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quinta-feira, 15 de maio de 2008

A Curva de Pareto

Do efeito colateral do IVA ao papel da volatilidade das Bolsas, ou de como na realidade a curva de Pareto ainda se pode agravar mais para a maioria da população.

Físicos simulam efeitos na economia usando princípios da física estatística. Dois investigadores franceses provocam polémica ao revelar o que afecta a distribuição da riqueza no sentido de uma maior concentração ou de um maior equilíbrio. As opções nos impostos e a volatilidade dos mercados financeiros são dois "actores" da maior importância.


Jorge Nascimento Rodrigues , Science & Finance web site
Artigo «Wealth Condensation in a simple model of economy», co-autoria de Jean-Philippe Bouchaud e Marc Mézard, publicado na revista «Physica» de Fevereiro 2000
Artigo mencionado na Harvard Business Review, edição de Abril 2002, por Mark Buchanan in Wealth Happens» Livro de Jean-Philippe «Theory of Financial Risks» (compra do livro) Sobre Vilfredo Pareto Centro Walras-Pareto em Lausana
Entrevista integral em inglês com Jean-Philippe Bouchaud disponível em Gurusonline.tv versão em inglês: «REVISITING PARETO'S 'TAIL' - RESEARCHERS APPLIED STATISTICAL PHYSICS PRINCIPLES TO EXPLAIN WEALTH DISTRIBUTION»


Físicos da "complexidade" - a moda teórica emergente - metem, sem querer, a colher na política económica, ao concluírem que «tudo o que favoreça as trocas parece ser um meio eficiente de reduzir desigualdades», pelo que medidas de política fiscal que limitem as trocas poderão ser mecanismos de maior concentração de riqueza. A ilação é óbvia para o campo do Imposto sobre o Valor Acrescentado, cujo efeito "colateral" do seu aumento poderá ser o de reduzir as trocas. Contudo, o estudo não se centra neste aspecto de interesse conjuntural no nosso país.
O artigo científico publicado na revista Physica com um título aparentemente inofensivo - «Condensação de riqueza num modelo de economia simples» - foi, agora, tirado do "gueto" de um publico muito restrito entendido em física e matemática, para o mundo dos gestores e dos decisores. Um artigo («Wealth Happens») do escritor americano Mark Buchanan na revista Harvard Business Review, na sua última edição de Abril (2002), revela para a realidade norte-americana as implicações deste estudo liderado por Jean-Philippe Bouchaud, de 40 anos, físico francês do Serviço de Física do Estado Condensado (Service de Physique de l'État Condensé )do Centre d'Études de Saclay, em Paris.
Bouchaud é conhecido dos mercados financeiros. Ele lançou em 2000 um "best-seller" em inglês e francês intitulado Teoria dos Riscos Financeiros. Prémio IBM para jovem cientista em 1990, ele fundou a Science-Finance, uma empresa de investigação académica e comercial nas áreas dos mercados financeiros e da gestão de risco, hoje integrada na Capital Fund Management, também francesa. «A física estatística é a ciência dos efeitos colectivos complexos. A economia não é a ciência dos efeitos colectivos humanos?», interroga-se para nos sugerir, de imediato, o porquê desta colherada de física na distribuição da riqueza. A física estatística é, aliás, uma disciplina dura que "invade" cada vez mais outras áreas, desde a dinâmica populacional ao tráfego urbano até aos terramotos.


A "cauda" de Pareto
Bouchaud simulou com Marc Mézard, outro físico francês, o que afecta o crescimento e a distribuição da riqueza, testando a célebre curva da sua distribuição exposta pelo economista italiano Vilfredo Pareto em 1896/7. Pareto formulou na sua obra Curso de Economia Política («Cours d'Économia Politique», em 3 volumes), escrito no período em que leccionou na Universidade de Lausana, na Suíça - antes da sua guinada política do princípio do século XX - ,uma "lei" para a distribuição da riqueza que seguia um padrão logarítmico.
De um modo simples, de cada vez que se duplica o montante de riqueza, o número de pessoas que a detém diminui num factor constante. A representação gráfica desta "lei" produziu uma curva em forma de "cauda" caída, em que, no limite dela, por exemplo, uma pequena percentagem de pouco mais de 1% da população poderá deter 10% da riqueza de um país - como sucede nos EUA, em que 300 mil pessoas detém essa fatia de topo. Em países de desenvolvimento intermédio ou em desenvolvimento, com uma classe média fraca, a curva de Pareto ainda pode "cair" mais abruptamente e ficar em grande parte "rastejante" - menos de 1% pode deter mais de 50% da riqueza.
O modelo "puro" de Bouchaud e Mézard confirmou a "cauda" de Pareto. Nas simulações, verificaram que dinheiro, conexões e trocas geram mais riqueza. Já é velho o ditado de que «dinheiro atrai dinheiro», mas os físicos juntaram-lhe dois outros ingredientes fundamentais - a dinâmica de trocas existente numa dada economia e a conectividade entre os agentes. E o que concluíram é que quanto mais conectada e em rede for a malha de um tecido económico maior distribuição de riqueza poderá haver. «A conectividade ajuda a fazer 'pingar' mais riqueza de cima para baixo», sublinhou-nos, com ironia. Em suma, se só minorias - por exemplo, grupos de interesse - usufruírem do efeito de rede a distribuição da riqueza piora.


Entortar a lei
A "cauda" de Pareto pode ser "entortada", no sentido de ficar mais "rastejante" - maior condensação de riqueza numa minoria - ou mais "levantada" (maior fracção da população com níveis de riqueza média). A volatilidade dos mercados financeiros é um dos mecanismos que acentua a concentração de riqueza, diz o estudo. «É óbvio que um punhado se saiu muito bem. Mas, em média, e no longo prazo, a volatilidade cria maiores desigualdades», referiu-nos Bouchaud.
Ao contrário da ilusão "capitalista popular" da classe média de que investir em época de "bolha" aumenta, a prazo, a sua riqueza pessoal, a volatilidade bolsista com o seu comportamento em iô-iô serve para "transferir" as ex-poupanças (ou mesmo rendimentos correntes ou fruto de empréstimos) deste segmento da população para um punhado de investidores bem informados que não se deixam cegar pela ganância e que sabem ler os sinais do mercado. Nos EUA, a volatilidade "moveu" 6 biliões de dólares de uns bolsos para outros.
Se o produto dos impostos sobre a riqueza não for globalmente distribuído, mas aplicado, por exemplo, para reduzir a dívida ou financiar projectos específicos, o resultado pode ser um aumento das desigualdades
Em contraste, as políticas de impostos directos são um mecanismo de "violação" benigna da curva de Pareto. «No nosso modelo puro, os impostos sobre o rendimento reduzem as desigualdades. No limite, até poderiam matar a cauda de Pareto, se uma taxa marginal aumentasse», sublinhou. Mas, na realidade, o seu efeito automático não é o que seria desejável. A grande riqueza provêm sobretudo dos ganhos de capital (lucros, dividendos, juros, mais valias, etc.) e uma parte da média riqueza provém do facto de vários segmentos de actividade profissional e empresarial se "auto-isentarem" desse efeito regulador dos impostos sobre o rendimento.
A simulação não permite ainda concluir sobre o efeito de dois mecanismos - o de cortar nas taxas de impostos para as camadas de rendimentos altos e para as empresas e o sistema financeiro. «Até à data, o nosso modelo ainda não é tão rico - se assim o podemos dizer - a ponto de poder lidar com esses problemas. O desenvolvimento do modelo para poder responder a essas e outras decisões políticas poderá levar anos», alegou o nosso interlocutor.
O estudo descobriu ainda "um resultado curioso", nas próprias palavras deste físico. «Se o produto dos impostos sobre a riqueza não for globalmente distribuído, mas aplicado, por exemplo, para reduzir a dívida ou financiar projectos específicos, o resultado pode ser um aumento das desigualdades», concluiu Jean-Philippe Bouchaud.


Via: http://www.janelanaweb.com/manageme/pareto.html

terça-feira, 13 de maio de 2008

Fome Global

por Michel Chossudovsky [*]

Nesta era pós Guerra-Fria a humanidade encontra-se numa crise económica e social, numa escala sem precedentes, que leva ao rápido empobrecimento de grandes sectores da população mundial. Economias nacionais entram em colapso, o desemprego aumenta em flecha. Fomes a nível local irrompem na África subsaariana, no sul da Ásia e em regiões da América Latina. Esta "globalização da pobreza" – que inverteu consideravelmente os melhoramentos da descolonização pós-guerra – começou no Terceiro Mundo, coincidindo com a crise do endividamento no início dos anos 80 e a imposição das fatais reformas económicas do FMI. A Nova Ordem Mundial alimenta-se da pobreza humana e da destruição do ambiente natural. Gera o apartheid social, encoraja o racismo e o conflito étnico, corrói os direitos das mulheres e precipita frequentemente os países num confronto destrutivo entre as nacionalidades. Desde os anos 90 que alargou as suas garras a todas as principais regiões do mundo, incluindo a América do Norte, a Europa ocidental, os países do antigo bloco soviético e os "Países Recém-Industrializados") do sudeste asiático e do extremo oriente. Esta crise mundial é mais devastadora do que a Grande Depressão dos anos 30. Tem consequências geopolíticas muito mais alargadas; a deslocalização económica também tem sido acompanhada da explosão de guerras regionais, da fractura de sociedades nacionais e nalguns casos da destruição de países inteiros. Esta é de longe a crise económica mais grave da história moderna. (Michel Chossudovsky, The Globalization of Poverty, First Edition, 1997)
Introdução A fome é a consequência do processo de reestruturação do "mercado livre" da economia global que tem as suas raízes na crise de endividamento do início dos anos 80. Não é um fenómeno recente como é sugerido em vários artigos dos meios de comunicação ocidentais. Estes concentram-se apenas na oferta e procura a curto prazo dos produtos agrícolas, e ignoram as causas estruturais muito mais amplas da fome global. A pobreza e a subnutrição crónica são condições preexistentes. As recentes subidas dos preços alimentares contribuíram para exacerbar e agravar a crise alimentar. A subida dos preços tem flagelado uma população empobrecida, que quase não tem meios para sobreviver. Têm ocorrido motins por causa do pão quase simultaneamente em todas as principais regiões do mundo:
"Os preços dos alimentos no Haiti subiram em média 40 por cento em menos de um ano, em que o custo de produtos como o arroz duplicou… No Bangladesh, [nos finais de Abril de 2008], cerca de 20 mil trabalhadores têxteis saíram para a rua a protestar contra a terrível subida dos preços dos alimentos e a exigir salários mais altos. O preço do arroz neste país duplicou em relação ao ano passado, ameaçando com a fome os trabalhadores, que ganham um salário mensal de apenas 25 dólares… No Egipto, os protestos dos trabalhadores contra os preços dos alimentos abalaram o centro têxtil de Mahalla al-Kobra, a norte do Cairo, durante dois dias na semana passada, em que duas pessoas foram mortas a tiro pelas forças de segurança. Foram presas centenas de pessoas e o governo enviou polícias à paisana para as fábricas para obrigar os trabalhadores a retomar o trabalho. Os preços dos alimentos no Egipto subiram 40 por cento desde o ano passado… No princípio deste mês, na Costa do Marfim, centenas de pessoas manifestaram-se em frente da casa do presidente Laurent Gbagbo, cantando "temos fome" e "a vida está cara demais, vocês estão a matar-nos. Manifestações, greves e confrontos semelhantes ocorreram na Bolívia, no Peru, no México, na Indonésia, nas Filipinas, no Paquistão, no Uzbequistão, na Tailândia, no Iémen, na Etiópia, e em quase toda a África subsaariana". (Bill Van Auken, Amid mounting food crisis, governments fear revolution of the hungry, Global Research, April 2008)
"A Eliminação dos Pobres" Com a existência de grandes sectores da população mundial já muito abaixo do limiar da pobreza, esta subida a curto-prazo dos preços dos produtos alimentares é devastadora. Há milhões de pessoas em todo o mundo que se encontram impossibilitadas de adquirir alimentos para a sua sobrevivência. Estes aumentos brutais estão a contribuir verdadeiramente para a "eliminação dos pobres" através da "morte pela fome". Nas palavras de Henry Kissinger: "Quem controla o petróleo, controla as nações; quem controla os alimentos, controla as pessoas". Quanto a isto, Kissinger já tinha dado a entender no contexto do Memorando 200 do Estudo de Segurança Nacional de 1974; "Implications of Worldwide Population Growth for U.S. Security and Overseas Interests" (Consequências do Crescimento Mundial da População para a Segurança dos EUA e seus Interesses Ultramarinos), que a ocorrência repetida de fomes podia constituir de facto um instrumento de controlo da população. Segundo a FAO, o preço dos cereais aumentou 88 % desde Março de 2008. O preço do trigo aumentou 181 % num período de três anos. O preço do arroz aumentou 50% nos últimos três meses (ver Ian Angus, Food Crisis: " The greatest demonstration of the historical failure of the capitalist model", Global Research, April 2008):
"A qualidade mais popular do arroz da Tailândia vendia-se a 198 dólares por tonelada há cinco anos e a 323 dólares por tonelada o ano passado. Em Abril de 2008, o preço chegou aos 1 000 dólares. Os aumentos ainda são maiores nos mercados locais – no Haiti, o preço de mercado dum saco de arroz de 50 quilos duplicou numa só semana em finais de Março de 2008. Estes aumentos são catastróficos para os 2,6 mil milhões de pessoas em todo o mundo que vivem com menos de 2 dólares por dia e gastam 60 a 80% dos seus rendimentos na alimentação. Há centenas de milhões que não têm posses para comer". (Ibid).
Duas dimensões inter-relacionadas Há duas dimensões inter-relacionadas para a actual crise alimentar global, que estão a lançar milhões de pessoas em todo o mundo na fome e na privação crónica, uma situação em que grupos inteiros de populações deixaram de ter meios para adquirir alimentos. Em primeiro lugar, é o processo histórico a longo prazo de reforma política macroeconómica e de reestruturação económica global que tem contribuído para baixar os padrões de vida mundiais, tanto nos países em desenvolvimento como nos países desenvolvidos. Em segundo lugar, estas condições históricas preexistentes de pobreza de massas têm sido exacerbadas e agravadas pela recente subida nos preços dos cereais que, nalguns casos, chegaram à duplicação do preço de retalho dos produtos alimentares. Estas brutais subidas de preços resultam sobretudo do comércio especulativo nos produtos alimentares. A explosão especulativa dos preços dos cereais Os meios de comunicação têm enganado levianamente a opinião pública quanto às causas destas subidas brutais de preços, concentrando-se quase exclusivamente nas questões dos custos de produção, do clima e de outros factores que resultam numa oferta reduzida e que podem contribuir para aumentar o preço dos produtos alimentares. Se bem que esses factores possam contribuir para tal, têm uma relevância limitada para explicar os aumentos brutais e dramáticos nos preços destes produtos. Os preços em espiral dos alimentos são sobretudo consequência da manipulação do mercado. São atribuíveis sobretudo ao comércio especulativo no mercado. Os preços dos cereais são inflacionados artificialmente por operações especulativas em grande escala nas bolsas mercantis de Nova Iorque e Chicago. Vale a pena assinalar que, em 2007, assistimos à fusão do Chicago Board of Trade (CBOT) com o Chicago Mercantile Exchange (CME), de que resultou a maior entidade mundial de comércio de produtos de consumo, incluindo uma ampla gama de instrumentos especulativos (opções, opções a prazo, fundos indexados, etc.) O comércio especulativo sobre o trigo, o arroz ou o milho, pode fazer-se na ausência de transacções reais de bens. As instituições que especulam no mercado dos cereais não têm que estar obrigatoriamente envolvidas na venda ou na entrega dos cereais. As transacções podem utilizar fundos indexados das mercadorias, ou seja, apostas sobre os movimentos gerais de subida ou descida dos preços das mercadorias. Uma "opção de venda" é uma aposta de que o preço vai descer, uma "opção de compra" é uma aposta de que o preço vai subir. Através duma manipulação concertada, os comerciantes institucionais e as instituições financeiras fazem o preço subir e depois fazem as suas apostas num movimento de subida do preço duma determinada mercadoria. A especulação gera a volatilidade do mercado. Por seu turno, a instabilidade que daí resulta encoraja uma maior actividade especulativa. Geram-se lucros quando os preços sobem. Em contrapartida, se o especulador está a descoberto no mercado, ganha dinheiro quando os preços entram em queda. Esta recente explosão especulativa nos preços dos alimentos tem vindo a provocar um processo mundial de formação de fome a uma escala sem precedentes. A falta de medidas reguladoras desencadeia a fome Estas operações especulativas não provocam a fome deliberadamente. O que provoca a fome é a ausência de procedimentos reguladores em relação ao comércio especulativo (opções, opções a prazo, fundos indexados). No actual contexto, o congelamento do comércio especulativo sobre produtos alimentares, decidido politicamente, contribuiria imediatamente para a baixa dos preços dos alimentos., Nada impede que estas transacções sejam neutralizadas e impedidas através de um conjunto de medidas reguladoras cuidadosamente concebidas. Mas, é visível que não é isso o que o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional estão a propor. O papel do FMI e do Banco Mundial O Banco Mundial e o FMI apareceram com um plano de emergência, para incentivo à agricultura em resposta à "crise alimentar". No entanto, não querem saber das causas desta crise. O presidente do Banco Mundial, Robert B. Zoellick, descreve esta iniciativa como um "novo contrato", um plano de acção "para o desenvolvimento a longo prazo da produção agrícola", que consiste, entre outras coisas, na duplicação dos empréstimos para a agricultura aos agricultores africanos.
"Temos que colocar o nosso dinheiro onde está hoje a nossa boca para que possamos levar comida às bocas famintas". (Robert Zoellick, director do Banco Mundial, citado pela BBC, 2.Maio.2008)
A "medicina económica" do FMI/Banco Mundial não é uma "solução" mas é sobretudo a "causa" da fome nos países em desenvolvimento. Mais empréstimos do FMI-Banco Mundial para "incentivos à agricultura" só servirão para aumentar os níveis de endividamento e exacerbar a pobreza em vez de a diminuir. Os "empréstimos baseados nesta política" do Banco Mundial são concedidos na condição de que os países obedeçam à agenda política neoliberal que, desde o início dos anos 80, tem vindo a conduzir ao colapso da agricultura alimentar a nível local. A "estabilização macroeconómica" e os programas de ajustamento estrutural impostos pelo FMI e pelo Banco Mundial aos países em desenvolvimento (como condição para a renegociação da sua dívida externa) conduziram ao empobrecimento de centenas de milhões de pessoas. As cruéis realidades económicas e sociais subjacentes à intervenção do FMI são a subida dos preços dos alimentos, as fomes a nível local, os despedimentos maciços de trabalhadores urbanos e domésticos e a destruição de programas sociais. O poder de compra interno caiu, foram fechadas escolas e clínicas de cuidados de saúde contra a fome, há centenas de milhões de crianças a quem tem sido negado o direito à educação básica. Tratamento de choque do FMI Historicamente, os preços em espiral dos alimentos a nível retalhista foram sempre provocados pelas desvalorizações da moeda, que resultaram invariavelmente numa situação hiper inflacionária. No Peru em Agosto de 1990, por exemplo, por ordem do FMI, os preços dos combustíveis aumentaram 30 vezes de um dia para o outro. O preço do pão aumentou 12 vezes de um dia para o outro:
"Em todo o Terceiro Mundo, a situação é de desespero social e de desânimo social numa população empobrecida pelos jogos das leis do mercado. Em 1989, os motins anti-SAP [Programa de Ajustamento Estrutural] e os levantamentos populares são reprimidos brutalmente: em Caracas, o presidente Carlos Andres Perez, depois de ter denunciado retoricamente o FMI por praticar 'um totalitarismo económico que mata não apenas com balas mas pela fome', declara o estado de emergência e envia unidades regulares de infantaria e de fuzileiros para as áreas pobres ( barrios de ranchos) nas colinas circundantes da capital. Os motins em Caracas anti-FMI foram ateados por um aumento de 200 por cento no preço do pão. Foram alvejados indiscriminadamente homens, mulheres e crianças: 'Noticiou-se que a morgue de Caracas tinha mais de 200 corpos de pessoas mortas nos três primeiros dias… e esta avisou que estava a ficar sem caixões'. Não oficialmente foram mortas mais de mil pessoas. Tunis, Janeiro de 1984, os motins pelo pão foram instigados sobretudo pela juventude desempregada protestando contra o aumento dos produtos alimentares; Nigéria, 1989: os motins estudantis anti-SAP levaram ao encerramento de seis universidades do país pelo Conselho Governamental das Forças Armadas; Marrocos, 1990: uma greve geral e um levantamento popular contra as reformas do governo, patrocinadas pelo FMI". (Michel Chossudovsky, op cit.)
A desregulamentação dos mercados de cereais A partir dos anos 80, os mercados de cereais foram isentos de regulamentação sob a supervisão do Banco Mundial, e os excedentes de cereais dos Estados Unidos e da União Europeia (EUA/UE) são utilizados sistematicamente para destruir os agricultores e desestabilizar a agricultura alimentar nacional. Os empréstimos do Banco Mundial exigem o levantamento das barreiras comerciais sobre os produtos agrícolas importados, levando ao abaixamento de preços dos excedentes de cereais dos EUA/UE nos mercados locais. Estas e outras medidas atiraram os produtores agrícolas locais para a falência. O "mercado livre" dos cereais – imposto pelo FMI e pelo Banco Mundial – destrói a economia dos agricultores e põe em risco a "segurança alimentar". O Malawi e o Zimbabué já foram países prósperos com excedentes de cereais. O Ruanda era praticamente auto-suficiente quanto a alimentos até 1990, quando o FMI ordenou a introdução dos excedentes de cereais dos EUA e da UE a preços baixos no mercado interno, provocando a falência dos pequenos agricultores. Em 1991-92, a fome atingiu o Quénia, a economia do pão com maior êxito da África oriental. O governo de Nairobi fora colocado na lista negra por não obedecer às prescrições do FMI. A ausência de regulamentação do mercado dos cereais tinha sido exigida como uma das condições para a reforma da dívida externa de Nairobi com o Clube de Paris de credores autorizados. (Michel Chossudovsky, The Globalization of Poverty and the New World Order, Second Edition, Montreal 2003) Por toda a África, assim como no sudeste asiático e na América Latina, o padrão do "ajustamento sectorial" na agricultura sob a custódia das instituições do Bretton Woods tem sido inequivocamente no sentido da destruição da segurança alimentar. Tem-se reforçado a dependência vis-à-vis o mercado mundial, o que conduz a uma explosão nas importações comerciais de cereais assim como à subida no influxo da "ajuda alimentar". Os produtores agrícolas foram encorajados a abandonar as culturas alimentares e a virarem-se para culturas de exportação de "alto valor", quase sempre em detrimento da auto-suficiência alimentar. Os produtos de alto valor assim como as culturas para ganhar dinheiro com a exportação foram apoiados por empréstimos do Banco Mundial. As fomes na era da globalização são o resultado desta política. A fome não é consequência da falta de alimentos, muito pelo contrário: os excedentes globais de alimentos são utilizados para desestabilizar a produção agrícola nos países em desenvolvimento. Fortemente regulamentada e controlada pelas indústrias agrícolas internacionais, esta sobre-produção acaba por conduzir à estagnação tanto da produção como do consumo dos produtos alimentares essenciais e ao empobrecimento dos agricultores em todo o mundo. Além disso, na era da globalização, o programa de ajustamento estrutural do FMI-Banco Mundial tem uma relação directa com a formação do processo da fome porque corrói sistematicamente todas as áreas da actividade económica, quer urbana quer rural, que não sirvam directamente os interesses do sistema do mercado global. Os rendimentos dos agricultores, tanto nos países ricos como nos países pobres, são espremidos por um punhado de empresas globais agro-industriais que controlam simultaneamente os mercados de cereais, os abastecimentos agrícolas, as sementes e os alimentos processados. É uma firma gigantesca, a Cargill Inc., com mais de 140 filiais e subsidiárias em todo o mundo, que controla grande parte do comércio internacional de cereais. A partir dos anos 50, a Cargill tornou-se o principal fornecedor da "ajuda alimentar" americana financiada pela Lei Pública 480 (1954). A agricultura mundial tem, pela primeira vez na história, a capacidade de satisfazer as necessidades alimentares de todo o planeta; no entanto, a própria natureza do sistema de mercado global impede que isso aconteça. A capacidade de produzir alimentos é enorme, mas os níveis do consumo de alimentos mantêm-se extraordinariamente baixos porque uma enorme porção da população mundial vive em condições de pobreza e de privação extremas. Além disso, o processo de "modernização" da agricultura levou à espoliação dos agricultores, aumentou a falta de terras disponíveis e a degradação ambiental. Por outras palavras, as próprias forças que encorajam a expansão da produção global de alimentos estão também a provocar contraditoriamente uma contracção nos padrões de vida e o declínio na procura de alimentos. Sementes geneticamente modificadas Coincidindo com a instituição da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1995, ocorreu outra importante mudança histórica na estrutura da agricultura global. Ao abrigo dos artigos do acordo da Organização Mundial do Comércio (OMC), os gigantes alimentares têm uma liberdade sem restrições para entrar nos mercados de sementes dos países em desenvolvimento. A aquisição de "direitos de propriedade intelectual" exclusivos sobre variedades de plantas pelos interesses agro-industriais internacionais, também favorece a destruição da biodiversidade. Agindo em benefício de um punhado de conglomerados da biotecnologia, as sementes geneticamente modificadas (GMO) têm vindo a ser impostas aos agricultores, frequentemente no contexto de "programas de ajuda alimentar". Na Etiópia, por exemplo, na sequência de uma grande seca, foram entregues conjuntos de sementes GMO a agricultores empobrecidos, com vista à reabilitação da produção agrícola. As sementes GMO foram plantadas, permitindo uma boa colheita. Mas depois os agricultores vieram a saber que as sementes não podiam voltar a ser plantadas, sem o pagamento de royalties à Monsanto, ao Arch Daniel Midland e a outros. A seguir, os agricultores descobriram que as sementes só dariam uma boa colheita se usassem os produtos adequados, incluindo o fertilizante, o insecticida e o herbicida, produzidos e distribuídos pelas companhias agro-industriais de biotecnologia. Economias rurais inteiras ficaram presas nas garras dos conglomerados agro-industriais. A quebra do ciclo agrícola Com o alastramento da adopção de sementes GMO, ocorreu uma importante mudança na estrutura e na história da agricultura tradicional desde a sua origem há 10 000 anos. A reprodução de sementes a nível da aldeia em viveiros locais foi interrompida pelo uso de sementes geneticamente modificadas. O ciclo agrícola, que possibilita aos agricultores armazenar as suas sementes orgânicas e a plantá-las para conseguir as suas colheitas seguintes, foi interrompido. Este padrão destrutivo – que resulta invariavelmente na fome – é repetido país atrás de país levando à morte mundial da economia rural.

02/Maio/2008
The Globalization of Poverty and the New World Order por Michel Chossudovsky Nesta nova edição ampliada do best-seller internacional de Chossudovsky, o autor realça os contornos duma Nova Ordem Mundial que se alimenta da pobreza humana e da destruição do ambiente, gera um apartheid social, encoraja o racismo e os conflitos étnicos e corrói os direitos das mulheres. O resultado, tal como mostram convincentemente os seus exemplos pormenorizados de todas as partes do mundo, é a globalização da pobreza. Este livro é uma hábil mistura duma explicação lúcida e duma crítica coerentemente fundamentada das direcções fundamentais em que o nosso mundo se movimenta, financeira e economicamente. Nesta nova edição ampliada – que inclui dez novos capítulos e uma nova introdução – o autor passa em revista as causas e consequências da fome na África subsaariana, a fusão dramática de mercados financeiros, o resultado dos programas sociais estatais e a devastação provocada pela redução de custos empresariais e pela liberalização do comércio. Publicado em 12 línguas. Mais de 150 mil exemplares vendidos em todo o mundo. A Globalization of Poverty na sua primeira e segunda edições foi publicada em doze línguas. Doze edições e co-edições em língua inglesa nos EUA, Reino Unido, Canadá (2 edições), Austrália, Malásia (2 edições), África do Sul, Índia (2 edições), Filipinas (2 edições), em francês (2 edições), alemão, espanhol, português (2 edições, Brasil e Portugal), finlandês, turco, japonês, coreano, italiano (2 edições), árabe, croata. [*] Professor de Economia na Universidade de Otava e Director do Centro para Investigação sobre a Globalização, que edita o sítio web www.globalresearch.ca . É colaborador da Enciclopédia Britânica. Os seus escritos estão traduzidos em mais de 20 línguas. O original encontra-se em http://www.globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=8877 Tradução de Margarida Ferreira
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

terça-feira, 22 de abril de 2008

Os Segredos Da "Sociedade Da Informação"

Ângelo Novo (*)

O velho Aristóteles era sobre isso absolutamente terminante: “o homem não deve trabalhar simultaneamente com a sua mente e com o seu corpo, pois que os dois tipos de trabalho são opostos; o trabalho do corpo impede o da mente, e o trabalho da mente impede o do corpo” (‘Política’, Livro VIII, Parte IV).
Durante milénios, atravessando vários modos de produção e distintas sociedades de classes, foi este o senso comum indiscutível. Uns fazem, outros concebem e dirigem. Correspondia fielmente à divisão social do trabalho e à apropriação privada dos meios de produção.
A alma é elevação e refinamento, o corpo bestialidade e degradação. Toda a riqueza social é criada pelo espírito, reflexo do sopro divino. O labor físico é apenas uma maldição sem sentido, imposta por nossos pecados e insuficiências humanas. Assim rezavam em uníssono, com variantes menores, a doutrina dos padres da Igreja e a dos próceres da filosofia idealista.
Poder-se-ia julgar que tudo isso são velharias perimidas. Dois séculos de propaganda democrática provocaram apesar de tudo algum desgaste na rigidez do sistema ocidental de castas, bem como na superstição ideológica por ele segregada como argamassa legitimadora. Hoje as classes sociais justificam-se por uma suposta meritocracia de base individual, que não se cansa aliás de lisonjear os que “vieram de baixo”.
A ciência ensina-nos que o complexo organismo humano é um sistema integrado. A consciência e o pensamento são fenómenos com uma base material (bio-química) já abundantemente estudada na neurologia e nas ciências do cérebro. Não há qualquer actividade humana física sem uma decisão e planificação ao nível do neo-cortex, assim como toda a actividade cerebral de relevo tem reflexos ao nível do sistema muscular. Não existe trabalho puramente “manual”, como o não há puramente “mental”.
Poder-se-ia pensar que era altura de dar descanso a esta clássica dicotomia, tributária dos sistemas filosóficos dualistas de outras eras. Mas isso seria subestimar a tenacidade e pertinácia dos instintos de classe da burguesia. E é assim que chegamos à nova coqueluche do pensamento económico e mundano nesta viragem de milénio: o advento da era da “informação”, proclamado pelos arautos da sociedade pós-industrial Daniel Bell, Alvin Toffler, Jeremy Rifkin ou o guru da gestão Peter Drucker, perante o aplauso generalizado da imprensa e das academias.
O trabalho físico de transformação material de matérias-primas em produtos com utilidades novas é agora considerado uma coisa do passado. Subsiste ainda, sem dúvida, e é até uma actividade estimável a todos os títulos. Mas a riqueza social verdadeiramente decisiva seria agora uma coisa puramente imaterial: ideações, signos, arrazoados e conceitos geralmente armazenados em suporte digital e movimentados nas “auto-estradas” da informação.
Chegamos enfim à era da produção imponderável. Para o teórico da “sociedade em rede” Manuel Castells, lugares e objectos físicos deixaram de ter significado económico, substituídos pelo conceito de “fluxos”. Podem ser ordens de compra de acções e títulos de bolsa, ideias geniais para uma campanha publicitária de choque, um novo conceito de marketing revolucionário, um novo plano de reestruturação da empresa com despedimentos em massa e, é claro, máxima contenção salarial. Tudo isto será naturalmente criação de “riqueza” e “alto valor acrescentado”, porque é “informação”.
Já o trabalho físico de fabrico dos produtos, isso será apenas um mero epifenómeno localizado, sem relevo de maior. Em Silicon Valley, Meca californiana da “nova economia”, uma mão-de-obra maioritariamente feminina, não sindicalizada, muita dela imigrante ilegal, reúne componentes electrónicos tendo para isso de manusear materiais altamente tóxicos como o cádmio, o chumbo e o mercúrio. Como desde há milénios, por cada membro da classe dominante a quem é permitido perorar ociosamente sobre a elevação fundamental da vida criadora do espírito, há sempre uma legião a quem as circunstâncias da vida obrigam a conhecer de perto a materialidade bruta e obstinada em que se alicerça a existência social.
Mas o discurso dominante continua ainda a ser o do primeiro. Sobre isso nada há de novo realmente, a não ser porventura o facto de estarmos a viver numa era de reacção, ocasião em que aquele discurso ganha sempre uma nova estridência, mas raramente uma nova profundidade. Por alguma razão desde há quase duzentos anos que a burguesia não quer que se investigue teoricamente o valor. Acha isso sempre uma questão “não científica”. Mas nem por isso deixou de se louvar continuamente a si própria e ao seu papel social, mesmo que para tal tenha de virar o mundo completamente do avesso num baile demencial de espectros e fetiches.
O conhecimento como factor produtivo.
Mas a “sociedade da informação” não é apenas um embuste ideológico, nem o poderia ser aliás de forma tão eficaz se não tivesse algum suporte material efectivo em que se basear. Como Marx há muito tempo previu, a produção capitalista tem evoluído no sentido de se tornar um processo de trabalho cada vez mais socializado, onde o factor conhecimento se torna cada vez mais preponderante.
Aqui, como ao longo deste artigo, considerarei “conhecimento” apenas a actividade intelectual que contribui para a acumulação do património científico e técnico da humanidade, para o enriquecimento do nosso “intelecto colectivo”. Deixo pois de fora actividades intelectuais (articulação de “signos”) puramente instrumentais, rotineiras e efémeras como contabilidade, gestão, secretaria, marketing, etc. Só o primeiro aliás será trabalho produtivo em sentido marxista.
Por outro lado, nunca é demais lembrar que todas estas novidades na paisagem industrial se verificam apenas nos países capitalistas mais avançados. Nos países periféricos, alguma industrialização que se verifique hoje é seguramente ainda de “vagas” anteriores, em cadeia de montagem ou mesmo em despóticas oficinas manufactureiras (“sweatshops”).
A economia mundial é assim, todo este sistema articulado de desenvolvimento desigual e combinado, por cujas artérias é continuamente bombeada mais-valia em direcção aos centros imperialistas. (É aliás nesse mesmo sentido que são sugados em cada vez maior número os trabalhadores do conhecimento qualificados naturais dos países pobres.)
Ora, é sempre considerando o sistema mundial no seu todo – e não uma sua parcela artificiosamente isolada - que temos de avaliar hoje da maturidade histórica do modo de produção capitalista e identificar os agentes portadores do projecto da sua superação revolucionária.
Feitos estes esclarecimentos e ressalvas, não deixa de ser impressionante relembrar aqui algumas passagens premonitórias de Marx, escritas no distante ano de 1858:
“Na medida em que a grande indústria se desenvolve, a criação efectiva de valor passa a depender menos do tempo ou montante de trabalho empregue e mais do poder dos agentes postos em acção durante o tempo de trabalho, agentes esses cuja ‘poderosa efectividade’ é por sua vez fora de qualquer proporção com o trabalho directo gasto na sua produção, dependendo antes do estado geral das ciências e do progresso da tecnologia, ou seja da aplicação da ciência à produção. (...)”
“O trabalho parece agora não ser incluído no seio do processo de produção; antes o ser humano relaciona-se com ele como vigilante e regulador do próprio processo de produção. (...) “Ele coloca-se ao lado do processo de produção em lugar de ser o seu actor principal. Nesta transformação, não é nem o trabalho directo humano que ele desempenha, nem o tempo durante o qual ele trabalha, mas antes a incorporação do seu próprio poder produtivo geral, da sua compreensão da natureza e domínio sobre ela por virtude da sua presença como corpo social - é, numa palavra, o desenvolvimento do indivíduo social que aparece como a grande pedra fundacional da produção e da riqueza.
O roubo de tempo de trabalho alheio, em que se esteia a presente riqueza, parece uma base bem miserável em comparação com esta nova, criada pela indústria em larga escala. Assim que o trabalho na forma directa deixou de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixou e tem de deixar de ser a sua medida, e assim o valor de troca tem de deixar de ser a medida do valor de uso. O trabalho excedente da massa deixou de ser a condição para o desenvolvimento da riqueza geral, assim como o não-trabalho de alguns deixou de ser condição para o desenvolvimento dos poderes gerais do intelecto humano.
Com isto, a produção baseada no valor de troca entra em colapso, e o processo de produção directo e material é liberto da sua forma de penúria e antagonismo. (...)” “O desenvolvimento do capital fixo indica até que ponto o conhecimento geral social se tornou uma força de produção directa, e até que ponto, consequentemente, as condições do próprio processo de vida social passaram para o controlo do intelecto geral e se transformaram de acordo com este. Até que ponto os poderes da produção social foram produzidos, não apenas na forma de conhecimento, mas também como órgãos imediatos da prática social, do processo real de vida.” (1)
A automação e a elevação da composição orgânica do capital põem-nos assim a questão dos limites da reprodução do sistema de extracção de mais-valia e da acumulação privada, pois que este se encontra dependente da constante incorporação de novo trabalho vivo (2). Lá chegaremos, seguramente, se nenhuma catástrofe regressiva se interpuser entretanto. Será então a altura em que, para franquear efectivamente tais limites, se tornará indispensável a tomada revolucionária do poder pela organização política representativa do projecto comunista.
Antes disso, porém, na fase embrionária em que nos encontramos presentemente coloca-se-nos antes o problema de uma transformação profunda na composição da classe trabalhadora e uma certa deslocação do cerne da actividade produtiva da fabricação de bens materiais para a produção de ideias e informação sob a forma mercantil. Em primeiro lugar, porque a introdução na produção de equipamento controlado por computador (robots, ferramentas digitais, etc.) faz com que a sua força de trabalho humana se concentre cada vez mais nas áreas de planeamento, pesquisa, investigação e design.
Vemos assim “fábricas” que se parecem cada vez mais com laboratórios. O trabalho físico “duro” é quase todo feito por máquinas, as quais é apenas necessário vigiar, controlar e reprogramar. As máquinas, porém, não criam valor mas, como capital constante que são, apenas o transmitem inalterado ao produto, à medida da sua depreciação. Temos assim que uma parte crescente do valor dos produtos nestas indústrias de ponta – e sobretudo uma parte crescente da mais-valia aí criada – é fruto de um trabalho predominantemente mental.
Em segundo lugar, há um crescente número de empresas que se especializaram na produção e venda de produtos intelectuais – investigação científica, projectos, invenções, design, software, bases de dados, etc. – com o fim de serem incorporados por outras empresas nos seus próprios processos produtivos.
Por fim, há uma enorme expansão na produção e venda ao consumidor final de produtos intelectuais em suporte facilmente reprodutível, tais como livros, periódicos, programas de televisão, audio-visuais, música, programas e jogos de computador, etc.. (3) (4)
Ora, a produção mercantilizada de bens ideais e de conhecimento implica uma série de problemas de difícil acomodamento para o sistema capitalista:
- O conhecimento, uma vez produzido, pode ser copiado e transmitido a muito baixos custos;
- O conhecimento nunca é consumido e, podendo embora incorrer em obsolescência e variações de significado, o seu período de vida potencial é o mesmo da espécie humana;
- Devido a estes factores, o conhecimento apenas pode ter um preço se for protegido por alguma forma de monopólio, o qual terá de ser imposto coercivamente pelo aparato estatal;
- O preço do conhecimento é de difícil estabelecimento porque a informação é indivisível e, por definição, os adquirentes não poderão compreender o conteúdo da mercadoria antes de... a terem adquirido;
- A natureza do conhecimento é tal que é extremamente difícil, senão impossível, manter indefinidamente monopólios sobre ele, havendo uma tendência permanente para que a informação detida privativamente “flua” de novo para o domínio público (3).
Novas vedações
As criações ideais e o conhecimento, em essência, querem ser livres. Vão assim resistir com extremo denodo e obstinação a todas as tentativas para os enclausurar e submeter ao processo de valorização e apropriação privada. Em particular, a produção de conhecimentos novos tende com toda a naturalidade a integrar-se no fundo comum que Marx designava por “intelecto geral”, considerando que a sua crescente ascendência sobre o processo produtivo provocaria o colapso da forma valor de troca.
Para a burguesia, porém, isto é em absoluto anátema e, literalmente, uma questão de vida ou de morte. É assim que ela vai tentar impor ao conhecimento novas “vedações” (enclosures), à semelhança das que retalharam os campos baldios (commons) de Inglaterra quando eles foram violentamente apropriados pelos poderosos terratenentes com o apoio da autoridade do Estado, num movimento que teve início no século XV (5).
Para isso dispõe de vários instrumentos jurídicos no campo da chamada propriedade intelectual, com destaque para as patentes, as marcas comerciais e o direito patrimonial de autor (copyright). A expansão recente dos direitos de propriedade intelectual tem sido impressionante. Tem-se assistido não só a um alargamento do campo das ideias patenteáveis, mas também a um reforço dos poderes permitidos aos proprietários e a um alargamento dos limites temporais de vigência desses mesmos direitos exclusivos.
Se até aqui se entendia que só invenções ou expressões originais podiam ser patenteáveis, isso agora é disputado. Por exemplo, a Directiva Europeia sobre Bases de Dados cria direitos de propriedade sobre meras compilações de factos sem qualquer originalidade. São agora ocorrência vulgar a concessão de patentes sobre descobertas no campo das ciências biológicas: sequências genéticas ou células estaminais humanas, organismos simples, espécies vegetais e animais, proteínas, genes, etc..
Numa decisão seminal impressionante, o Supremo Tribunal da Califórnia decretou que o Sr. Moore não tinha quaisquer direitos sobre as células do seu baço, concedendo uma patente aos médicos que com base em algumas delas criaram uma linha celular no valor comercial de um bilião de dólares. Na área das ciências dos materiais e das nanotecnologias há também um grande movimento de privatização de novos conhecimentos. E essa tendência pode conhecer uma verdadeira explosão na confluência entre a engenharia genética, a electrónica e a chamada biologia sintética.
Até aqui, a norma geral era a de que as ideias e descobertas científicas pertenciam por regra ao domínio público, sendo a concessão de quaisquer direitos particulares sobre elas sempre uma excepção que tinha de ser justificada por razões de utilidade pública. Normalmente, isso era feito recorrendo ao mito do homo economicus: só concedendo direitos de uso exclusivo a certos inventores e a certos investidores é que a sociedade poderia beneficiar plenamente da criatividade e iniciativa dos seus membros mais engenhosos, a qual seria despertada apenas pela perspectiva de benefícios materiais egoístas.
Entretanto, com a radicalização desta mesma ideologia na ofensiva neo-liberal contemporânea, vai ganhando terreno a ideia de que o domínio público é por definição ineficiente e retardatário. A excepção passa a regra, devendo a propriedade particular expandir-se em todas as direcções e o domínio público tornar-se residual. Abriu-se assim uma corrida rumo à nova fronteira, num espírito de verdadeiro “far west”.
As universidades são verdadeiramente retalhadas em coutadas de serviço dos grandes blocos monopolistas. Há empresas e corretores especializados na detenção, avaliação, combinação em “pacotes”, promoção e comercialização de títulos de propriedade intelectual. Os desacordos e incertezas sobre o conceito e limites das matérias patenteáveis não parecem desencorajar os açambarcadores, que se preparam afincadamente para longas, intricadas e dispendiosíssimas batalhas judiciais. Esta demarcação de propriedades envolve um verdadeiro labirinto de subtilezas conceptuais (do filosófico ao eminentemente técnico) que fazem do jurista o agrimensor do nosso tempo.
Na era da “globalização”, importava naturalmente dar âmbito mundial a este novo “scramble” imperialista. Desde o Acordo TRIPS de Marrakesh em 1994, dispõe-se já de um instrumento de imposição universal dos títulos de propriedade intelectual, sob a supervisão da Organização Mundial para a Propriedade Intelectual e do Conselho TRIPS da Organização Mundial do Comércio. Por outro lado, os gabinetes de patentes mais poderosos do mundo (de âmbito nacional e regional) estão em vias de se organizar com vista à criação de um Sistema Mundial de Protecção da Propriedade Intelectual.
Para quem tem a paixão do conhecimento das fundações de uma sociedade de classes é sempre fascinante viver numa dessas épocas em que aquelas são expandidas e revigoradas por uma nova vaga de pilhagem e assalto desbragado. É em momentos assim que fica patente como tinha razão o jovem Proudhon ao afirmar epigramaticamente que a propriedade é o roubo (6).
Passado o festim, é claro, a extorsão continua mas já normalizada e envolta numa sóbria capa institucional. Naqueles momentos é que vale tudo. O camponês vê-se expropriado de culturas praticadas pelos seus antepassados desde tempos imemoriais; os universitários vêm vedado o acesso ao ensino de certos conhecimentos científicos; o cidadão incauto acorda um dia dando-se conta da expoliação de uma parte do seu baço.
O esbulho é aqui tanto mais flagrante quanto é certo que o conhecimento foi sempre, historicamente, um processo eminentemente social. Nenhuma criação ou descoberta importante é possível que não seja alicerçada no imenso património comum do conhecimento acumulado da humanidade.
Do mesmo modo, é óbvio para todos (excepto porventura os ideólogos burgueses mais fanatizados) que, se partes desse património passarem a ser subtraídas ao uso e disponibilidade comuns, outros tantos caminhos de progresso encontrar-se-ão desse modo bloqueados para a humanidade.


Vagas sucessivas na luta de classes
A burguesia afadiga-se de uma forma insana a lotear e adjudicar-se a si própria novos talhões do conhecimento mas o seu esforço é inglório. Na verdade, está apenas a bombear água de um navio que se afunda inexoravelmente, a um ritmo muito superior ao que ela pode sequer tentar contrariar. A informação quer ser livre e, em última instância, nada lhe poderá barrar esse caminho, por muito que a queiram circunscrever com “arame farpado electrónico”.
Isso acontece porque, por um lado, no seu suporte digital, a informação é muito facilmente armazenada, sendo o custo da sua reprodução e transmissão praticamente zero. Por outro lado, a chegada das comunicações em rede veio libertar uma energia social de dádiva e cooperação espontânea que espanta e desgosta naturalmente todos os ideólogos que, como o inefável João César das Neves, insistem que na vida “não há almoços grátis”.
Uma primeira manifestação deste fenómeno foi a própria Internet, criada com base em programas e protocolos não comerciais e cuja imensa maioria de conteúdos é também disponibilizada livremente. Com grande impacto público, houve o desenvolvimento de toda uma série de fenómenos de partilha espontânea e anónima que fazem tremer, nomeadamente, a indústria discográfica. O caso mais interessante é porém o movimento de software livre. O princípio geral deste movimento é de que os programas informáticos devem ser livremente usados, partilhados, examinados no seu código originário, modificados e redistribuídos (com ou sem alterações), tudo sem quaisquer restrições decorrentes de “propriedade intelectual”.
Criadores e distribuidores de software livre podem oferecê-lo gratuitamente ou vendê-lo. O que não podem é colocar restrições à sua livre circulação e desenvolvimento posteriores. Para esse efeito, a licença pública do software livre contém provisões (o chamado “copyleft”) para garantir que quaisquer novos desenvolvimentos no programa se mantenham também sempre de uso e acesso livres. Deste modo, a criatividade distribuída de todos os interessados vai-se acumulando, mantendo-se o produto aberto e de acesso garantido para todos que o desejem utilizar, estudar e aperfeiçoar.
O mais conhecido produto de um esforço cooperativo desenvolvido nesta base é o sistema operativo GNU/Linux. A ortodoxia ideológica burguesa logo nos diria que um tal sistema de produção não pode funcionar, por falta de “incentivos” (7) e direcção. E no entanto, os obstinados factos contam-nos uma história completamente diversa. O software livre rivaliza ou supera mesmo os seus concorrentes “proprietários”, sendo uma fonte contínua e extremamente alargada de inovação da mais alta qualidade.
E o que é mais espantoso é que, não só os diversos campos de trabalho especializado mas também a própria direcção geral estratégica do desenvolvimento do produto parece poder ser recolhida sem problemas pelo mesmo método da criatividade distribuída, espontânea e voluntária que flui de todo o lado.
É claro que novas possibilidades técnicas, por si só, não nos trazem novos princípios ideológicos se não houver actores sociais capazes de os encarnarem e fazerem seus. Ora, sob esse ponto de vista, o comunismo digital é produto e estandarte de uma fracção extremamente minoritária e relativamente privilegiada da classe trabalhadora, mesmo que tomemos em conta apenas as sociedades capitalistas mais desenvolvidas.
Trata-se do pequeno segmento dos trabalhadores especializados de forte componente técnica, um de entre os vários que resultaram da pulverização da classe operária tradicional como resultado da automatização e da desregulação neo-liberal. Ao todo serão apenas umas escassas dezenas de milhões em todo o mundo. No entanto, são hoje um dos mais destacados actores no grande teatro da luta de classes a nível planetário, guarnecendo uma das frentes fundamentais da gesta de libertação da humanidade do pesadelo capitalista. São eles que resistem em primeira linha às tentativas de esbulho do património cultural adquirido da espécie humana, defendendo a sua preservação e enriquecimento dentro do domínio público universal.
Uma segunda frente de lutas é constituída em torno das relações industriais clássicas, que são aquelas sobre as quais se edificou toda a tradição do movimento socialista desde o segundo quartel do século XIX. Aqui, o núcleo axial do confronto situa-se em torno da posse dos meios físicos de produção, a partir da qual decorre a exploração da força de trabalho (extracção da mais-valia) dos despossuídos. Esta frente de luta continua naturalmente a ser fundamental, mas nota-se agora que ela operou uma certa deslocação para a semi-periferia do sistema imperialista mundial.
Os grandes exércitos operários não desapareceram, mas onde eles agora se encontram é sobretudo no Sudeste asiático e em alguns países da cintura islâmica ou da América Latina. Em bastantes destes países, a classe operária está ainda em formação ou é extremamente jovem. Noutros dispõe já de alguma experiência de organização. Em todos os casos, porém, verifica-se alguma dificuldade na sua evolução até uma radicalidade madura e independente.
Essa dificuldade tem a ver com o facto de as relações industriais imediatas nestes países estarem integradas em relações mais amplas de domínio imperialista. Não há assim uma saída socialista possível para o conflito local sem a resolução prévia dessa dominação do capital externo. É por isso que a classe operária, em geral, participa aí no bloco nacional-democrático (tantas vezes clandestino) onde aliás nem sempre consegue arranjar espaço para preservar suficientemente a sua identidade própria.
A terceira frente de luta – e o verdadeiro êmbolo que porá em marcha todas as outras – é constituída pela imensa massa dos camponeses desenraizados e sem terra, dos pobres urbanizados de todo o mundo, dos desempregados, semi-empregados, empregados ocasionais, desqualificados, precários, informais e clandestinos que procuram em vão, a Norte como a Sul, uma vida e um sentido neste mundo em putrefacção do capital (9).
Poderemos considerar toda esta imensa mole humana como um novo proletariado, dando a esta palavra o seu sentido etimológico original (10). O proletariado romano era uma classe economicamente improdutiva que havia sido expulsa dos seus ofícios pela mão-de-obra escrava trazida das conquistas. O seu préstimo maior para a classe dirigente era fornecer-lhe prole para servir de soldadesca.
De um modo relativamente similar, o moderno proletariado é a classe excluída da vida económica pelo declínio inexorável da lucratividade do capital. A produção automatizada não cria valor novo. A elevação da composição orgânica do capital pressiona a taxa de lucro para a baixa. Decrescendo a massa total da mais-valia, logo a burguesia quer para si uma fatia dela acrescida, aumentando a taxa de exploração. Mas isso para ela é apenas dar mais uma volta com a corda ao pescoço, porque comprimindo a massa salarial cria problemas de realização da mais-valia produzida.
Neste círculo vicioso de estagnação e declínio, grandes massas laboriosas são despedidas e mantidas em reserva indefinidamente, juntando-se aos camponeses desalojados que reclamam também o seu lugar à mesa da prometida abundância pós-industrial. Agudiza-se assim a contradição entre as forças de produção emergentes e as relações de produção em vigor.
A um certo ponto, se quisermos manter o sistema capitalista, teremos que eliminar a população “excedente”. Se quisermos manter a população, teremos que nos livrar do sistema. É o crescimento imparável da nova massa proletária que vai fazer amadurecer e explodir a contradição fundamental nos seus nódulos críticos. É a pressão vital exercida da base por todo este imenso magma humano em combustão que vai servir de detonador, transmitindo energia à luta da classe operária que por sua vez a retransmitirá, com vigor acrescido, à causa da liberdade sustentada pelos trabalhadores do conhecimento.
O grande ídolo capitalista da propriedade privada estremecerá na cúpula, acabando por se despenhar aos pés da multidão, rasgando-se assim de par em par os horizontes para um mundo inteiramente novo em que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos.
NOTAS:
(1) Karl Marx, ‘Grundrisse’, Penguin Classics, Londres, 1993 (reimpressão), pág. 704 a 706. Tradução minha a partir da versão inglesa de Martin Nicolaus.
(2) Este argumento foi reafirmado com toda a clareza por Ernest Mandel em ‘Late Capitalism’, Verso, Londres, 1978, p. 207 e 506 ss.. (a primeira edição desta obra é de 1972). Em sentido contrário, o economista neo-marxista Piero Sraffa – ‘Production of commodities by means of commodities’, Cambridge, 1960 - admitiu, com base em intricadas demonstrações matemáticas, a possibilidade de subsistência da criação de mais-valia e sua distribuição entre proprietários privados dos meios de produção mesmo num sistema produtivo totalmente automatizado, isto é, sem incorporação de trabalho vivo. Esta posição, que se mantém ainda muito influente, parece basear-se num equívoco filosófico sobre o conceito de valor. Refira-se contudo que Mandel ressalvava (ob. cit., pág. 207, nota 43) ser “teoreticamente concebível que uma indústria inteiramente automatizada nos E.U.A. ou na Alemanha Ocidental recolhesse a mais-valia necessária à valorização do seu capital através de trocas com mercadorias de outros países produzidas de forma não automatizada”.
(3) Cf. Tessa Morris-Suzuki, ‘Capitalism in the computer age’ em Jim Davis, Thomas Hirschl e Michael Stack (editores), ‘Cutting Edge – Technology, Information, Capitalism and Social Revolution’, Verso Books, Londres e Nova Iorque, 1997. Este precioso volume colectivo é uma obra de referência fundamental sobre as novíssimas tendências do capitalismo e da luta com vista à sua superação revolucionária.
(4) Outra vertente da questão da “sociedade de informação” (que não abordaremos neste artigo), aliás a mais valorizada pelos comentadores burgueses, é o facto de existir nas sociedades capitalistas mais desenvolvidas um grande crescimento do sector dos “serviços”. Grande parte deste crescimento é em sectores de conteúdo “pobre” e de carácter improdutivo que são meros sucedâneos mercantilizados da criadagem particular de outros tempos. Todavia, há também “serviços” em áreas ricas em conteúdo técnico especializado – sobretudo a Saúde, a Educação, a distribuição de água, energia e comunicações, etc. – onde se criam constantemente conhecimentos novos e cuja qualificação como trabalho produtivo é pelo menos uma questão em aberto, pois que eles participam decisivamente na formação e reprodução da força de trabalho social.
(5) Cf. ‘O Capital’, Ed. Avante, Lisboa, 1997, Livro Primeiro, Tomo III, pág. 811 ss.. Esta feliz analogia é usada por vários autores contemporâneos, sendo explorada em profundidade por James Boyle, professor de Direito na Universidade de Duke (E.U.A.) especialista em direito do domínio público cuja página pessoal na web em http://james-boyle.com/ está repleta de ensaios e estudos de grande interesse sobre aquilo que ele denomina de “segundo movimento de vedações” relativo aos “baldios intangíveis da mente”.
(6) Um poema anónimo inglês do século XVIII começava assim: “The law locks up the man or woman / Who steals the goose from off the common / But leaves the greater villain loose / Who steals the common from off the goose” (A lei põe homem ou mulher na prisão / que furte um ganso à solta no campo / Mas deixa livre o bem maior vilão / Que rouba o campo por debaixo do ganso) - epígrafe ao ensaio de James Boyle ‘The second enclosure movement and the construction of the public domain’, no sítio web já citado.
(7) Eben Moglen, num ensaio disponível em http://firstmonday.org/issues/issue4_8/moglen/, tem este impressionante parágrafo que, mais que uma inspirada premonição, é um traçado de rumo e um apelo à luta para os comunistas:
“Incentivos é apenas uma metáfora, e como metáfora para descrever a actividade criativa humana é bastante inepta. (…) A melhor metáfora surgiu no dia em que Michael Faraday se apercebeu do que acontece quando enrolamos um cabo de cobre à volta de um magneto que depois fazemos girar. A corrente flui nesse cabo, mas nós não nos perguntamos qual é o incentivo que os electrões têm para se deslocarem. Dizemos que a corrente resulta de uma propriedade emergente do sistema, a que chamamos indução. A questão que colocamos é «Qual é a resistência do cabo?». Portanto, o corolário metafórico de Moglen à Lei de Faraday diz que se enrolarmos a Internet sobre todas as pessoas no planeta e fizermos girar o planeta, o software flui por toda a rede. É uma propriedade emergente das mentes humanas em contacto que elas criarão coisas para o seu prazer recíproco, ou para vencer a sua agreste solidão. A única questão a colocar aqui é: qual é a resistência da rede? O corolário metafórico de Moglen à lei de Ohm afirma que a resistência da rede é directamente proporcional à força de campo do sistema de «propriedade intelectual». A resposta correcta (…) é assim: resistir à resistência.”
(8) A exposição de princípios do movimento de software livre, informações gerais e vários ensaios - nomeadamente do seu principal animador e ideólogo Richard Stallman (http://www.stallman.org/) - podem ser lidos no site do Projecto GNU e da Free Software Foundation em http://www.gnu.org//. A Associação Nacional para o Software Livre tem o seu site em http://www.ansol.org/
(9) Sobre as perspectivas de uma “sobre-urbanização” do mundo no próximo futuro, leia-se o excelente artigo de Mike Davis ‘A Planet of Slums’ em http://www.newleftreview.net/NLR26001.shtml .
(10) Nelson Peery, ‘The birth of a new proletariat’, em ‘Cutting Edge’, ob. cit., pág. 297 ss..
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(*) Ângelo Novo é um ensaísta marxista independente, residente na cidade do Porto, em Portugal. Contactos e detalhes biográficos seus podem ser colhidos no seu site na internet em http://www.geocities.com/CapitolHill/6446/ , onde podem também ser lidos on-line alguns dos seus escritos políticos e de criação literária

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Uma Devastadora Crise Se Revela

Robert Brenner (*)

A presente crise pode bem vir a revelar-se a mais devastadora desde a Grande Depressão. Ela manifesta profundos e irresolvidos problemas da economia real, os quais têm sido, literalmente, embrulhados em papel de dívida ao longo das últimas décadas, bem como um aperto financeiro de curto prazo de uma profundidade que não era vista desde a II Grande Guerra.
A combinação entre a fraqueza da acumulação capitalista subjacente e o desmoronamento do sistema bancário é o que torna este deslizamento para o fundo tão intratável para os desenhadores de política económica e o seu potencial de desastre tão sério. A praga dos encerramentos e das casas abandonadas – frequentemente arrombadas e despojadas de tudo, inclusive dos fios de cobre – atinge em particular Detroit e outras cidades do Midwest norte-americano.
O desastre humano que isto representa para centenas de milhares de famílias e para as suas comunidades pode ser apenas o primeiro sinal do que esta crise capitalista realmente significa. Subidas históricas nos mercados financeiros nas décadas de 1980, 1990 e 2000 – com as suas transferências de rendimento e riqueza para o 1% dos mais ricos, que definiram toda uma época – distraíram a atenção para a real fraqueza a longo prazo das economias capitalistas mais desenvolvidas. O desempenho económico nos Estados Unidos, na Europa e no Japão, medido por praticamente todos os indicadores padrão – o crescimento do produto, o investimento, o emprego e os salários - deteriorou-se década após década, ciclo económico após ciclo económico, desde 1973.
Os anos decorridos desde o início do presente ciclo, que teve origem nos inícios de 2001, têm sido os piores de todos. O crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) nos Estados Unidos tem sido o mais lento para qualquer intervalo de tempo comparável desde o final dos anos 1940. Incremento em novas fábricas ou equipamentos e criação de empregos têm estado, respectivamente, um terço e dois terços abaixo das médias anteriores à última Grande Guerra. Os salários reais por hora, para trabalhadores produtivos (que não de supervisão), que constituem 80% da força de trabalho, têm permanecido praticamente estagnados, arrastando-se aproximadamente ao mesmo nível desde 1979.
A expansão económica também não tem sido significativamente mais forte, quer na Europa, quer no Japão. O declínio no dinamismo económico do mundo capitalista avançado tem as suas raízes numa grande quebra na lucratividade, causada em primeiro lugar por uma tendência crónica para a sobre-capacidade no sector manufactureiro mundial, que remonta as suas origens até ao final dos anos 1960, início dos anos 1970. Por volta do ano 2000, nos Estados Unidos, Japão e Alemanha, a taxa de lucro na economia privada ainda não tinha completado uma retoma, não estando mais alta no ciclo dos anos 1990 do que o esteve no dos anos 1970.
Com uma mais baixa lucratividade, as empresas tiveram lucros reduzidos para acrescer as suas fábricas e equipamentos, bem como incentivos menores para se expandirem. A perpetuação de uma lucratividade reduzida desde os anos 1970 conduziu a um constante abaixamento do investimento, em proporção do PIB, em todas as economias capitalistas avançadas, bem como a reduções faseadas no crescimento do produto, dos meios de produção e do emprego.
A arrastada desaceleração na acumulação capitalista, bem como a compressão efectuada pelas empresas na sua massa salarial, de modo a restaurar as suas margens de lucro - para além dos cortes governamentais nos gastos sociais, feitos para escorar os lucros capitalistas – resultou num abrandamento do crescimento do investimento, assim como da procura governamental e privada e, portanto, num abrandamento do crescimento da procura como um todo. Esta fraqueza na procura agregada, resultado último da quebra de lucratividade, constitui há muito a principal barreira ao crescimento nas economias capitalistas avançadas.
Para contrariar a persistente fraqueza da procura agregada, os governos, dirigidos pelo dos Estados Unidos, não viram outra hipótese senão incorrer em cada vez maiores volumes de dívida, através de canais cada vez mais variados e barrocos, para manter a economia em funcionamento. Inicialmente, durante os anos 1970 e 1980, os Estados eram obrigados a incorrer em cada vez maiores défices públicos, para sustentar o crescimento. Todavia, embora mantendo a economia relativamente estável, estes défices também a tornaram cada vez mais estagnada: na linguagem da época, os governos obtinham cada vez menos impacto com a sua prodigalidade (“less bang for their buck”), menos crescimento do PIB por um dado incremento no endividamento.
Dos cortes orçamentais à economia das bolhas
Deste modo, no princípio da década de 1990, tanto nos Estados Unidos como na Europa, governos virados para a direita e guiados pelo pensamento neo-liberal (privatização e cortes nos programas sociais), sob a direcção de Bill Clinton, Robert Rubin e Alan Greenspan, procuraram superar a estagnação com uma tentativa de movimento em direcção a orçamentos equilibrados. Mas, embora esse facto não seja muito realçado pela maioria dos relatos sobre este período, esta mudança dramática teve um impacto radicalmente negativo.
Porque a lucratividade ainda não tinha recuperado, as reduções no défice, trazidas pelas tentativas de equilíbrio orçamental, resultaram num enorme golpe para a procura agregada, com o resultado de que, na primeira metade dos anos 1990, tanto a Europa como o Japão passaram por recessões devastadoras, as piores do período pós-guerra, enquanto a economia dos Estados Unidos experimentou a chamada retoma sem novos empregos (“job-less recovery”). Consequentemente, desde meados dos anos 1990, os Estados Unidos viram-se obrigados a recorrer a mais poderosas e arriscadas formas de estímulo, para contrariar a tendência à estagnação. Em particular, substituiu os défices públicos do keynesianismo tradicional pelos défices privados e a inflação dos activos, aquilo que poderíamos designar por keynesianismo dos preços dos activos ou, simplesmente, economia das bolhas (“bubblenomics”).
Na grande corrida ascensional das bolsas dos anos 1990, as grandes empresas e os lares abastados viram a sua riqueza em papel expandir-se de uma forma maciça. Deste modo, puderam embarcar num aumento sem precedentes do endividamento e, nessa base, sustentar um poderoso acréscimo do investimento e do consumo. A expansão da chamada “Nova Economia” foi o resultado directo da histórica bolha nos preços dos activos dos anos 1995-2000. Mas uma vez que os preços dos activos subiram em desafio às taxas de lucro declinantes, e uma vez que os novos investimentos vieram exacerbar a sobre-capacidade industrial já existente, seguiu-se rapidamente a quebra bolsista e a recessão de 2000-2001, deprimindo a lucratividade no sector não financeiro até ao seu nível mais baixo desde 1980.
Sem se deixar deter por isso, Greenspan e a Federal Reserve Board (Fed), com a ajuda de outros grandes bancos centrais, contrariaram o novo ciclo depressivo com uma nova ronda de inflação nos preços dos activos. Foi isso que, essencialmente, nos trouxe até onde estamos hoje. Reduzindo a zero as taxas de juro reais de curto prazo, durante três anos, eles facilitaram uma explosão historicamente sem precedentes do endividamento familiar, a qual contribuiu para o disparar dos preços imobiliários, alimentando-se dele também depois, por sua vez.
De acordo com a revista ‘The Economist’, a bolha imobiliária mundial entre 2000 e 2005 foi a maior de todos os tempos, ultrapassando mesmo a de 1929. Tornou possível um crescimento constante nas despesas de consumo e no investimento residencial, que conjuntamente conduziram a expansão. O consumo pessoal mais a construção de casas respondeu por 90 a 100 % do crescimento do PIB nos E.U.A. nos primeiros cinco anos do corrente ciclo económico. Durante este mesmo intervalo de tempo, segundo as contas do Moody’s Economy.com, o factor imobiliário, por si só, foi responsável por elevar o crescimento do PIB quase 50% acima do que o que teria ocorrido sem ele – 2,3% em vez de 1,6%.
Deste modo, conjuntamente com os défices orçamentais reaganianos de George W. Bush, os défices familiares sem precedentes contribuíram para obscurecer quão débil era de facto a recuperação económica subjacente. O crescimento da procura de consumo suportada pela dívida, bem como, de uma forma mais geral, do crédito super-barato, revigoraram mais do que apenas a economia norte-americana. Em especial por terem conduzido aí a um novo surto de importações e a um alargamento do défice de transacções correntes (balança de pagamentos e comercial) para níveis sem precedentes, promoveu também aquilo que apareceu como uma impressionante expansão da economia global.

Uma brutal ofensiva patronal
Mas se os consumidores fizeram a sua parte, o mesmo não pode ser dito dos negócios privados, apesar dos inauditos estímulos económicos. Greenspan e o Fed sopraram a bolha imobiliária de forma a dar tempo às grandes corporações para resolverem o seu problema de excesso de capital e retomarem o investimento. Mas em vez disso, concentrando-se na restauração das suas taxas de lucro, elas desencadearam uma brutal ofensiva contra os trabalhadores. Elas elevaram o crescimento da produtividade, não tanto com o aumento do investimento em fábricas e equipamentos avançados, mas cortando radicalmente nos empregos e compelindo os empregados que ficaram a preencher os vazios. Comprimindo os salários enquanto espremiam mais produto por pessoa, elas apropriaram-se, sob a forma de lucros, de uma percentagem historicamente sem precedentes no aumento que teve então lugar no PIB não financeiro.
As corporações não financeiras, durante esta expansão, elevaram significativamente as suas taxas de lucro, mas mesmo assim continuando sem atingir de novo os já reduzidos níveis dos anos 1990. Para além disso, tendo em vista o grau em que esta elevação dos lucros foi atingida simplesmente pela via do aumento das taxas de exploração – fazendo os operários trabalhar mais e pagando-lhes menos, por hora – há razões para duvidar por quanto tempo isto poderá continuar assim. Acima de tudo, porém, ao aumentar a lucratividade comprimindo a criação de empregos, o investimento e os salários, os patrões norte-americanos mantiveram em baixa o crescimento da procura agregada e, deste modo, cortaram no seu próprio incentivo para se expandirem.
Simultaneamente, em vez de aumentar o investimento, a produtividade e o emprego, de modo a aumentar os lucros, as empresas procuraram explorar os custos de empréstimo hiper-baixos para melhorar a sua posição (e a dos seus accionistas) por via da manipulação financeira – pagando as suas dívidas, distribuindo dividendos e comprando as suas próprias acção para fazer subir a sua cotação, particularmente sob a forma de uma enorme onda de fusões e aquisições. Nos Estados Unidos, ao longo dos últimos quatro ou cinco anos, tanto os dividendos como a recompra de acções, como percentagem dos ganhos retidos, explodiram para os seus mais elevados níveis na época pós-guerra. O mesmo género de coisas tem vindo a acontecer um pouco por toda a economia mundial – na Europa, no Japão, na Coreia.

O rebentamento das bolhas
No final de tudo, o facto é que, nos Estados Unidos e em todo o mundo capitalista avançado, desde 2000, temos assitido ao mais lento crescimento da economia real desde a II Grande Guerra. E assitimos também à maior expansão financeira e da economia de papel na história dos Estados Unidos. Não é preciso ser marxista para dizer que as coisas não poderão continuar assim.
É claro, da mesma forma que a bolha nos mercados bolsistas dos anos 1990 acabou por rebentar, também a bolha imobiliária se esvaziou. Em consequência disso, o filme da expansão apoiada no imobiliário, que vimos durante o ciclo ascendente, está agora a passar em reverso. O preço das casas já baixou 5% desde o seu pico de 2005, mas isto é apenas o começo. Está estimado pela Moody’s que, quando a bolha imobiliária tiver esvaziado por completo, nos começos de 2009, os preços das casas terão baixado 20% em termos nominais – e ainda mais em termos reais – o que é, de longe, o maior declíneo na história norte-americana pós-guerra.
Do mesmo modo que o efeito positivo de riqueza produzido pela bolha imobiliária conduziu a economia em frente, o efeito negativo do desastre está a guiá-la para trás. Com o valor das suas residências em declínio, as famílias não podem continuar a tratar as suas casas como terminais Multibanco. Os empréstimos de garantia imobiliária estão em declínio e, portanto, as famílias vêm-se obrigadas a consumir menos.
O perigo subjacente a isto é que, não sendo mais capazes de “aforrar” putativamente através dos seus valores imobiliários crescentes, as famílias norte-americanas comecem a aforrar deveras, levando a um aumento da taxa de poupança pessoal – que neste momento está ao seu nível histórico mais baixo de sempre – puxando assim o consumo para baixo. Compreendendo como o fim da bolha imobiliária iria afectar o poder de compra dos consumidores, as empresas cortaram na sua contratação, com o resultado de que o crescimento do emprego caiu significativamente, desde inícios de 2007.
Graças à crise imobiliária galopante e à desaceleração no emprego, logo no segundo quartel de 2007, os fluxos monetários totais que entraram para a disposição das famílias, em termos reais, que tinham crescido a uma taxa de 4,4% em 2005 e 2006, caíram para perto de zero. Por outras palavras, se adicionarmos o rendimento real disponível das famílias, mais os seus levantamentos em crédito de garantia imobiliária (“home equity”), mais os seus empréstimos para consumo, mais as suas realizações em ganhos de capital, ver-se-á que o dinheiro que as famílias tinham efectivamente para gastar tinha parado de crescer. Bem antes que a crise financeira batesse à porta, no Verão passado, a expansão já estava no seu estertor final.
Complicando enormemente esta recessão e tornando-a extremamente perigosa, está, é claro, o colapso dos créditos hipotecários de risco (“sub-prime”), que se verificou como extensão do rebentamento da bolha imobiliária. Os mecanismos que ligam os empréstimos hipotecários sem escrúpulos realizados a uma escala titânica, aos encerramentos de casas em massa, ao colapso do mercado de títulos (“securities”) sustentado pelas hipotecas de risco, à crise nos grandes bancos que detinham directamente tão grandes quantidades destes títulos, tudo isto requereria uma discussão em separado.
O que aqui podemos dizer, à laia de conclusão, é simplesmente que, porque as perdas bancárias são tão grandes, desde já enormes, e em vias de crescer cada vez mais à medida que a recessão se torna pior, a economia enfrenta a perspectiva, sem precedentes no período pós-guerra, de uma paralisação total do crédito no exacto momento em que entra em recessão. Os governos enfrentam, agora mesmo, problemas de dificuldade sem paralelo conhecido, para tentar evitar este resultado.

(*) Robert Brenner é professor no Departamento de História e director do Center for Social Theory and Comparative History da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), tendo-se distinguido pelas suas teses originais sobre a origem do capitalismo na economia rural inglesa, as quais deram origem a um animado debate entre historiadores marxistas nos anos 1970, que ainda hoje prossegue (Brenner debate). É também autor de algumas obras sobre economia contemporânea, como ‘The Boom and the Bubble’, New Left Review, Novembro-Dezembro de 2000, ou ‘The Economics of Global Turbulence’ London: Verso, 2006. É geralmente criticado por, na sua obra de historiador, como na de economista, privilegiar a análise dinâmica das relações sociais horizontais (concorrência) sobre a das relações verticais (luta de classes). O presente artigo foi originalmente publicado no nº 132 (Janeiro-Fevereiro de 2008) da revista norte-americana ‘Against the Current’: http://www.solidarity-us.org/node/1297 .

Via: http://www.ocomuneiro.com/nr6_04_robertbrenner.html

Segredos dos Centros Bancários Offshore

Um grande especialista revela segredos dos centros bancários offshore

por Entrevista de Michael Hudson a Standard Schaefer [*]

A indústria petrolífera estabeleceu a prática, há um século atrás, de os navios arvorarem "bandeiras de conveniência" como meio de evitar impostos sobre o rendimento. Desde a década de 1960 o próprio governo norte-americano tem encorajado bancos americanos a instalar filiais de centros hot-money [NT] no Caribe e em ilhas mais distantes a fim de atrair dinheiro estrangeiro para o dólar.
O objectivo inicial era ajudar a financiar a Guerra do Vietnam tornando os EUA numa nova Suíça para o hot money do mundo. Esta política teve êxito em transformar os Estados Unidos num centro de capital volátil para ditadores do terceiro mundo, presidentes mexicanos e oligarcas russos. A antiga União Soviética agora financia uma porção substancial do défice da balança de pagamentos dos EUA com o capital volátil dos "reformadores" neoliberais facilitado pelos cleptocratas da retaguarda. O resultado transformou-se num sistema completo que permite às corporações transnacionais evadirem impostos por toda a parte, incluindo os próprios Estados Unidos. Isto permite a investidores internos globalizarem as suas operações através da montagem de filiais offshore estilo Enron nas Ilhas Cayman, nas Índias Ocidentais Holandesas ou em alguma pequena e agora famosa ilha do Pacífico à sua escolha.
O sistema de regulamentação permissivo relativo a estas cabeças de ponte offshore da evasão fiscal evoluiu para um ponto que permite a investidores americanos e europeus livrarem-se de impostos simplesmente contratando um advogado para montar um escritório num lugar conveniente e descobrir uma firma de contabilidade apta a efectuar os seus registos acriticamente — o que é suficientemente bom para a aceitação das autoridades fiscais nestes dias de operações tributárias reduzidas. O resultante mergulho no ratio das obrigações fiscais das corporações em relação ao rendimento nacional tem sido um factor de grande importância no crescente défice do orçamento federal dos EUA. Negócios — e especialmente o sector financeiro — estabelecem companhias testas-de-ferro e ajustam os seus preços de transferência (exemplo: sobre vendas de matérias-primas a refinarias, e de produtos refinados ou semi-manufacturados para os seus distribuidores finais nos países industriais) de modo a terem todos os seus lucros nestes enclaves livres de impostos. O capital volátil não deixaria os países se não tivesse algum lugar seguro para ir. Um crescente número de ilhas para evitar impostos aproveitam o facto de que elas são bastante pequenas para adoptarem quaisquer códigos fiscais que pretendam. Advogados a actuarem por conta de lobbies financeiros e de negócios na América do Norte e na Europa redigiram leis que transformam estes centros bancários naquilo que o Prof. Hudson chama anti-Estados.
SS: Em anteriores entrevistas o sr. explicou como a economia tem sido "financiarizada" de modo a libertar empresas do fisco. Que papel desempenham nisto os paraísos fiscais? MH: As empresas montam companhias de comércio em ilhas sem impostos e declaram quaisquer rendimentos ou ganhos de capital que obtenham no imobiliário, acções ou outros investimentos como feitos nestas "cascas" (shells) . Isto levou à ironia de que os impostos tornaram-se puramente voluntários para os negócios modernos. SS: Como isto afecta a economia interna dos EUA? MH: Desonerar de impostos os rendimentos dos negócios — e os rendimentos financeiros em particular — faz com que os contribuintes individuais suportem o fardo fiscal através da retenção nos salários da Segurança Social, Medicare e contribuições de fundos de pensão. Os consumidores também suportam um fardo crescente por meios de impostos sobre as vendas e outros impostos locais. SS: As estatísticas confirmam isto? MH: Os paraísos fiscais offshore permitem às companhias multinacionais dar a impressão de que não ganham quaisquer rendimentos com os negócios feitos nos países onde os impostos são gravados a taxas europeias ou norte-americanas. A realidade é que as companhias americanas fazem um bocado de dinheiro que não declaram. Entretanto, os centros bancários offshore libertam-nas de terem de pagar impostos sobre estes rendimentos, ou sobre ganhos de capital. É por isso que estamos a incorrer em défices orçamentais tão elevados hoje em dia. SS: Sei que tem uma experiência de 40 anos em relação a estes centros bancários offshore e enclaves livres de impostos. MH: Aprendi sobre eles no decorrer do meu trabalho como economista especializado em balança de pagamentos, e posteriormente como administrador de um fundo mútuo. Minha primeira pista sobre como estes enclaves eram montados tive ao trabalhar para o Chase Manhattan Bank em 1965-66 e me foi atribuida a tarefa de redigir um relatório sobre os impacto da indústria petrolífera na balança de pagamentos dos EUA. Depois de ler os livros habituais sobre como o cartel operava em todo o mundo ainda tinha dificuldades em perceber as declarações de rendimentos e despesas da indústria petrolífera e as estatísticas publicadas pelo Departamento de Comércio. Meu principal problema era descobrir onde as companhias de petróleo faziam os seus lucros. Seria na produção final onde o petróleo bruto era extraído do chão, ou na fase do processamento onde o petróleo era refinado, ou na distribuição final onde era vendido aos seus utilizadores finais para aquecer edifícios, movimentar carros, voar aviões e fabricar produtos petroquímicos e plásticos? David Rockefeller conseguiu-me um encontro numa tarde com Jack Bennett, o tesoureiro da Standard Oil of New Jersey (a velha Esso antes de ter mudado o seu nome para Exxon). "Os lucros são feitos exactamente aqui, no gabinete do Tesoureiro", explicou ele, "onde quer que eu decida". Ele mostrou-me o vasto espaço de manobra (leeway) que um conglomerado global organizado verticalmente desfruta por ser capaz de assinalar "preços de transferência" feitos para declarar o lucro global em qualquer ponto em que os impostos sejam mais baixos no estatisticamente labiríntico trajecto do petróleo entre a cabeça do furo e o postos de abastecimento de gasolina. Os impostos eram mais baixos (de facto, não existentes) no Panamá e na Libéria, onde a indústria regista devidamente os petroleiros sob as suas bandeiras de conveniência. A Standard Oil apreçava baixo o bruto para estes navios filiados, e vendia-o a preço alto, quase a preço de retalho a refinarias e tomadores no mercado dos países industriais consumidores de petróleo. SS: Como é que alguém poderia utilizar as estatísticas para detectar o que está a acontecer? MH: Não é fácil descobrir transações com estes países de bandeira de conveniência nas estatísticas da balança de pagamentos dos EUA. Ao invés de serem listados como países genuínos na África ou na América Latina, eles aparecem ao invés disso sob um obscuro título de coluna chamado "internacional". Os que os vêem apressadamente tendem a passar isto por alto, pois não indica um país ou região específica. Algumas pessoas podem imaginar mesmo que isto se refira a veneráveis organizações internacionais como as Nações Unidas, o FMI ou o Banco Mundial. Mas o que "internacional" significa é, muito simplesmente, "navios internacionais" registados sob bandeiras de conveniência. Muito adequadamente, eles não pertencem realmente à economia de um país estrangeiro, porque é uma ficção legal de que as companhias dos EUA utilizam simplesmente para produzir pós de impostos numa base irrealista "como se". SS: O sr. está a dizer que as estatísticas são traduzidas numa linguagem de irrealidade. MH: Uma não realidade cuidadosamente estruturada — e uma não realidade que tem consequências para o mundo real, pode estar certo. A essência deste jogo é que a Esso e outros majors do petróleo foram capazes de "jogar" os sistemas fiscais mundiais pela venda do seu petróleo bruto a um preço tão baixo às suas companhias de navios petroleiros de modo a deixar pouco rendimento para a Arábia Saudita, Venezuela ou outros países produtores de petróleo. Isto desencorajou-os a assumirem o controle da sua riqueza mineral, especialmente porque eles não têm frotas de petroleiros para movimentar este óleo. As filiais de navegação das corporações deram meia volta e vendem o seu petróleo às suas refinarias a jusante. Estas geralmente foram localizadas seguramente no offshore em diferentes jurisdições políticas (ex.: Trinidad para o petróleo venezuelano). O petróleo era transferido a tão alto preço que apesar do pesado investimento de capital nestas instalações, os refinadores e os distribuidores relatavam perdas ano após ano, década após década. SS: Como puderam as autoridades fiscais na Europa e nos EUA não entender o que estava a acontecer? MH: É aqui que o poder de lobbying político dos grandes grupos de interesses entram em cena. A sua capacidade para evitar ter de declarar rendimentos sobre os quais os impostos seriam devidos reflectiu a passividade dos colectores de impostos na Europa e na América do Norte onde estavam localizadas a maior parte das instalações a jusante. Alguém pode pensar que tais governos teriam imputado um imposto mínimo, com base no princípio de que qualquer investimento deve esperar ganhar pelo menos uma taxa normal de retorno, do contrário não seria efectuado ou mantido. Fechando os olhos a esta lógica, os governos aceitaram as declarações de lucros e perdas tal como os contabilistas das companhias as submetiam. Eles permitiram que os lucros da perfuração de petróleo, refinação e marketing desaparecessem no buraco negro da navegação internacional. As companhias mineiras seguiram uma prática contábil semelhante, com as suas frotas de navios e refinarias. Estas companhias de petróleo e de minerais estavam entre as maiores multinacionais. SS: O sr. está a dizer que os lucros caíram estatisticamente, mas não realmente. O que significa isto para a teoria de que os preços de mercado estabelecem (allocate) recursos eficientemente ao reflectirem custos de oferta e procura? MH: O desenvolvimento de abrigos fiscais em países bandeira de conveniência para registar lucros corporativos dificilmente pode ser encarado como um fenómeno meramente marginal. Por aproximadamente um século desempenhou um papel central nas economias americana e europeia. Mas os preços são fictícios ao invés de resultarem de custos reais ou da oferta e procura. Somente o imenso poder político destes sectores extractivos poderia ter induzido os seus governos a permanecerem tão passivos em face do dreno fiscal que eles implicam — um tratamento fiscal favorável negado aos demais contribuintes. Entretanto, gradualmente outros sectores aprenderam a emular a estratégia de evitar impostos pela utilização de centros bancários offshore. SS: Além dos preços de transferência eram usados outros truques contábeis? MH: Companhias mãe consolidaram os seus campos petrolíferos no Extremo Oriente, África e América do Sul dentro dos seus balanços internos americanos por meio da organização das mesmas não como filiais estrangeiras distintas mas sim como "ramos". Esta tecnicalidade permitiu-lhes tomar todo o crédito fiscal americano por esgotamento (depletion) em relação ao seu rendimento. O esgotamento de recursos de outros países era tratado como se eles fizessem parte da economia americana — excepto que os lucros eram tomados na Libéria e no Panamá. SS: O sr. teve quaisquer conflitos ao trabalhar para o Chase e as companhias de petróleo ao produzir este relatório? MH: Foi-me dada rédea larga. Disseram-se para produzir as melhores estatísticas possíveis. Eles tornaram claro que se as respostas não fossem aquelas que eles e a indústria do óleo esperavam, não publicariam o meu relatório, mas pelo menos queriam saber qual era a situação estatística. Aceitei a encomenda nestes termos. COMO OS GOVERNOS RUSSO E AMERICANO ALIMENTARAM OS CENTROS OFFSHORE DE CAPITAL VOLÁTIL SS: Como estes paraísos fiscais evoluíram para centros financeiros offshore independentes das operações de companhias de navegação? MH: O denominador comum é evitar impostos, mas a proliferação de centros bancários offshore ganhou uma vida própria, com base no capital volátil e no hot money . SS: Isto também ocorreu em resultado de manobras fiscais corporativas? MH: Esta não foi a principal motivação. A Suíça e o Liechtenstein teriam bastando para o nível de capital volátil e poupanças criminais que caracterizavam a década de 1950. A fim de os paraísos hot-money de tipo moderno emergirem, teve de ser criada uma configuração institucional para possuir dólares ou outras divisas duras fora dos seus países de origem — algo que proporcionasse o mesmo grau de "privacidade", "confidencialidade" e portanto imunidade em relação às autoridades que a Suíça proporcionava com as suas famosas leis do segredo bancário. As companhias de petróleo e de minérios não infringem as leis nem fazem qualquer coisa ilegal, e portanto não precisam desta espécie de privacidade. Elas simplesmente redigem e emendam as leis fiscais para inserir alçapões (loopholes) em favor de si próprias. O dinheiro real era mantido nas suas sedes. Mas os centros bancários offshore destinavam-se a uma espécie diferente de depósitos — aquele que precisava ser mantido fora do alcance das autoridades americanas ou europeias. SS: Então como se desenvolveram estes veículos offshore para depósitos de dólares? MH: Na realidade, o grande catalisador foram os soviéticos e os próprios governos americanos. A história começa com a criação do mercado do eurodólar durante os anos da Guerra Fria. Em fins da década de 1950 a União Soviética tinha um problema. Precisava de contas bancárias denominadas em dólares americanos para pagar os seus vários programas de despesas no Ocidente. Mas a Guerra Fria aquecia, ela temia que o governo americano pudesse confiscar suas contas bancárias nos EUA (tal como o Chase Manhattan faria com o Irão após o derrube do xá). A Rússia portanto abordou um certo número de bancos britânicos e sugeriu que estabelecessem contas permitindo às agências soviéticas manterem as suas receitas de dólares em contas denominadas em dólares (ao invés de converte-los em libras esterlinas) e utilizar estas contas em dólar para pagar fornecedores no Ocidente. Os bancos britânicos concordaram e assim nasceu o mercado eurodólar — um mercado para depósitos de dólares possuídos fora dos Estados Unidos. SS: Assim, uma grande inovação no capital financeiro foi estabelecida pelos próprios soviéticos. Percebiam eles o que estavam a fazer? Ao tentarem evadir-se ao controle americano, acabaram por ajudar ou prejudicar os interesses globais dos EUA? MH: Ninguém captou as implicações a princípio. Como acontece muitas vezes, esta inovação financeira alimentou uma sucessão de consequências inesperadas. As multinacionais americanas consideraram útil manter dólares offshore para facilitar suas próprias transações, especialmente quando elas começaram a comprar firmas europeias e outras estrangeiras e estabelecer os seus próprios ramos além mar. Os bancos americanos montaram agências (branches) em Londres e outros centros monetários a fim de servir estas companhias. Quando a política monetária foi endurecida, durante o anos da Guerra do Vietnam, estes bancos acharam mais fácil a oferta de dinheiro vinda das suas agências estrangeiras. As agências reguladoras bancárias não haviam previsto este desenvolvimento e não impuseram qualquer exigência de que as matrizes pusessem de lado reservas contra os depósito que vinham destes ramos estrangeiros. Assim, os depósitos eurodólar tornaram-se a grande fonte de depósitos para os grandes bancos internacionais americanos para emprestar quando o dinheiro estava a ficar apertado devido ao dreno da Guerra do Vietnam na balança de pagamentos. COMO O GOVERNO AMERICANO PRESSIONOU O CHASE A MONTAR AGÊNCIAS NOS CENTROS DE HOT-MONEY SS: Qual foi a experiência mais notável que teve com estas instituições? MH: A Guerra do Vietnam estava a empurrar a balança de pagamentos para o défice, drenando a oferta de ouro que suportava a divisa. O ouro fora a alavanca da potência financeira internacional dos EUA desde a Primeira Guerra Mundial, e agora estava a fluir para fora a fim de pagar a guerra no sudeste asiático. As administrações Johnson e Nixon sabia que se travar a guerra significasse menos consumo interno os eleitores opor-se-iam à guerra. Assim, eles prosseguiram uma política de canhões e manteiga, promovendo um consumo interno pesado e gastos deficitários, deixando pouco para vender para fora. Os Estados Unidos não estavam desejosos de permitir que sectores económicos chaves fossem vendidos a estrangeiros para equilibrar os seus pagamentos internacionais, embora aconselhassem outros países devedores a fazer isso depois de 1980. Responsáveis americanos procuram atrair divisas estrangeiras de qualquer forma, mas as suas opções eram limitadas. Uma grande possibilidade permanecia: atrair capital volátil estrangeiro. Isto podia ser feito sem ascender as taxas de juros internas, mas proporcionando um paraíso seguro para o hot money estrangeiro. Portanto, os estrategas geopolíticos americanos estavam desejosos de aceitar depósitos bancários estrangeiros, sem importar de onde viessem. Em termos de balança de pagamentos, o dinheiro estrangeiro ao ser convertido em dólares e mantido em agências estrangeiras de bancos americanos faria isto tão bem como dinheiro em bancos americanos, na medida em que estes depósitos fossem mantidos em dólares e não em divisas estrangeiras. SS: Isto foi uma política explícita MH: Bastante explícita. Isto foi no tempo em que tanto hot money estava a ir para a Suíça que o seu franco estava a tornar-se a mais dura divisa do mundo. Os estrategos financeiros americanos procuraram uma política que apoiasse o dólar em grande parte da mesma maneira. O Departamento de Estado e do Tesouro abordaram os principais bancos internacionais do país com uma proposta para fazer algo que eles teriam temido fazer sem o incentivo oficial. Eles deviam estabelecer e expandir as suas próprias agências nos grandes centros de capital volátil do mundo — e talvez ajudar a estabelecer alguns novos. Isto não só atrairia dinheiro volátil estrangeiro como manteria internamente as quantias substanciais que estavam a ser enviadas para o exterior pelos evasores fiscais americanos. Em 1996 um antigo empregado do Departamento de Estado que se havia tornado responsável do Chase perguntou a minha opinião acerca de um memorando que esboçava o interesse comum entre a diplomacia económica e os bancos internacionais do país em relação ao estabelecimento de agências offshore destinadas a atrair algum do hot money do mundo afastando-o da Suíça e de outros centros de capital volátil. Os EUA são provavelmente o segundo maior centro volátil no mundo, mas com pouca probabilidade de rivalizar com a Suíça num futuro previsível. Tal como a Suíça, o dinheiro volátil flui para os EUA provavelmente de todos os países do mundo. É manuseado quase exclusivamente pelo grandes brokers de Nova York e Miami, advogados, e principais bancos comerciais. Responsáveis do próprio CMB International Department and Trust Department confirmam que manuseiam uma razoável quantia de dinheiro volátil estrangeiro. Entretanto, isto é insignificante em relação ao total potencialmente disponível. Há um consenso geral entre responsáveis do CMB e peritos tanto americanos como europeus que entidades com base nos EUA ou controladas pelos EUA são gravemente penalizadas na competição pelo dinheiro volátil com os suíços ou outros centros monetários a longo prazo. Isto se deve aos seguintes factores interrelacionados: (a) A demonstrada capacidade do Tesouro americano, do Departamento da Justiça, da CIA e do FBI para obterem registos de clientes, congelarem contas de clientes, e forçarem o testemunho de responsáveis americanos em entidades controladas pelos americanos, com apoio adequado nos tribunais americanos. (b) O investimento restritivo americano e os regulamentos e políticas de corretagem, os quais limitam a flexibilidade e o segredo da actividade de investimento. (c) O imposto americano sobre património e a retenção fiscal sobre investimentos estrangeiros. (d) O papel dos EUA como grande contendor na Guerra Fria, e a resultante probabilidade de que investimentos através de uma entidade americana poderiam ser expostos a qualquer hostilidade ou congelamento de activos ocorridos devido à Guerra Fria. (e) A visão geralmente mantida (e parcialmente incorrecta) de muitos estrangeiros refinados de que os administradores de investimentos americanos são ingénuos e inexperientes na manipulação de fundos estrangeiros, especialmente em mercados estrangeiros. Apesar destas limitações, os EUA provocaram o interesse de possuidores de dinheiro volátil sob outros aspectos. Isto inclui: Os maiores e mais activos mercados de valores (securities) do mundo, assegurando tanto liquidez como diversificação. Facilidade de transferências e manuseamento mecânico de investimentos, parcialmente através da rede mundial de bancos americanos. A principal reserva de divisas do mundo, o dólar americano. Em anos recentes, inigualada estabilidade financeira e um dos mais altos níveis de crescimento económico entre os principais países industriais. Finalmente, probabilidade desprezível de revolução ou confisco, e baixa probabilidade de inconvertibilidade. O memorando citava Beirute, Panamá, Suíça e outros centros a partir dos quais os governo americano convidava o Chase a atrair capital volátil internacional através da colocação dos seus serviços à disposição dos ditadores existentes e em perspectiva, traficantes de droga, criminosos e mesmo adversários da Guerra Fria. O Chase e outros grandes bancos americanos responderam com a montagem de uma rede de centros offshore para converter os EUA numa Suíça de alto nível. SS: Isto realmente aconteceu, e o governo concordou com isto? MH: O governo e os bancos estavam bem conscientes do facto de que os delinquentes são as pessoas mais líquidas do mundo, pela simples razão de que eles temem possuir propriedade à plena vista das autoridades — excepto nos caos em que a sua propriedade real pode ser lavada através de um labirinto de companhias fachadas e placas com nomes nas dobras legais dos gabinetes de advogados offshore que ganham a sua vida administrando tais estratagemas financeiros. As grandes firmas de contabilidade americanas, firmas legais e conselheiros de investimento logo entraram no negócio de aconselhar corporações e clientes ricos a montarem contas bancárias offshore em nome de companhias de papel. SS: Parece uma bomba. Alguma vez já publicou isso? MH: Mostrei ao professor de ciências económicas e jornalistas canadiano Tom Naylor, o qual reproduziu-o em 1987 no seu livro Hot Money , páginas 33-34. O livro foi traduzido em muitas línguas e reimpresso numerosas vezes. Está para ser reimpresso outra vez este ano pela McGill-Queens University Press, no Canadá, e de facto estou a escrever uma introdução para a próxima edição. Mas realmente não tem havido muita discussão, porque o assunto do hot money continua fora das preocupações da maior parte dos economistas académicos. SS: Houve algum debate sobre se isto era a coisa certa a fazer? MH: Sim, uma série de audiências no Congresso foram efectuadas, e muitos relatórios excelentes foram incluídos. Mas a moralidade do certo-ou-errado não desempenhou um grande papel. Uma das principais questões políticas era simplesmente se o governo deveria impor uma retenção impositiva de 15 por cento sobre propriedades (holdings) estrangeiras de títulos do Tesouro, com base em que isso provavelmente seria o único rendimento fiscal que recuperaria. Porta-vozes do governo convenceram o Congresso a não impor o imposto, argumentando que esta desencorajaria o hot money estrangeiro — e também o hot money americano, pois isto importa — de possuir títulos do Tesouro. Os Estados Unidos precisavam de todo mercado que pudessem criar para os seus títulos naquele tempo, para deter a saída de ouro. Assim, o imposto de retenção sobre o estrangeiro foi abolido. SS: Por outras palavras, o Tesouro permitiu evitar impostos internos americanos a fim de conseguir uma entrada de dólares na balança de pagamentos, e manter baixas taxas de juros internas. MH: Sim. O IRS já permitira evitar a ocorrência de impostos sob pressão das grandes multinacionais tais como as companhias de petróleo e mineração. A integração vertical permitia-lhes administrar preços de transferência de uma forma que minimizava o seu passivo fiscal global. Privando-se de onerar fiscalmente os juros pagos pelos títulos do Tesouro americano favoreceu o hot money americano. No fim da década de 1960 os Estados Unidos estavam a caminho de tornar-se o principal paraíso para o capital volátil do mundo. O Citibank, o Chase e outros estabeleceram ou expandiram operações para que as suas subsidiárias de "private banking" oferecessem "confidencialidade" a clientes, que vão desde os principais políticos do México até os cleptocratas da Rússia na década de 1990. SS: Mas o preço foi dar aos infractores da lei internacionais um melhor tratamento fiscal do que aos cumpridores da lei e cidadãos contribuintes. MH: Sim, e há uma razão para isto. O mais impressionante disso é que a maior parte dos detentores de liquidez na sociedade de hoje são criminosos e evasores fiscais. Eles têm uma boa razão para evitar o imobiliário ou outras propriedades tangíveis. É demasiado visível para acusadores e autoridades fiscais. É por isso que as estatísticas de balança de pagamentos classificam os movimentos de capital como "invisíveis". Prestigiosas firmas de contabilidade e parceiros legais ocupam-se em inventar truques para evitar impostos e criar um "véu de intermediários" ("veil of tiers") para proporcionar um manto de invisibilidade para a riqueza acumulada por desfalcadores, evasores fiscais, uns poucos traficantes de droga, traficantes de armas e agências de inteligência do governo para utilização nas suas operações encobertas. SS: Assim, tudo isto tornou o capital financeiro mais cosmopolita e menos sujeito à regulamentação nacional e ao controle governamental. MH: Sim, e no fim da década de 1980 administradores de dinheiro americanos estavam a incorporar fundos mútuos offshore para penetrar nos mercados globais de capitais. COMO CENTROS HOT-MONEY TRANSFORMARAM O CAPITAL VOLÁTIL NUM MERCADO PARA DÍVIDAS GOVERNAMENTAIS SS: Qual foi o efeito destes paraísos fiscais e centros bancários sobre as economias dos outros países? MH: Tal como as autoridades americanas esperavam, o hot money do mundo descobriu ser mais conveniente ir para centros bancários dolarizados offshore. SS: Pode dar um exemplo de como isto funcionou? MH: Em 1989 fui contratado pela firma de gestão de dinheiro Scudder, Stevens and Clark, de Boston, a fim de passar uns meses a organizar um fundo de dívida soberana (sovereign-debt fund) , isto é, um fundo que investisse em títulos de governos do terceiro mundo. Foi o primeiro de tais fundos, e começou aquilo que se tornaria uma torrente de emissões na década de 1990. Mas naquele estágio primitivo a Scudder foi incapaz de encontrar clientes americanos desejosos de colocar US$ 75 milhões numa região em que se haviam queimado gravemente na esteira da insolvência do México em 1982. Por outro lado, aquele evento traumático pressionou as taxas de empréstimo para cima para aproximadamente 45 por cento ao ano em relação a títulos do governo denominados em dólar da Argentina e do Brasil, e a cerca de 25 por cento para os tesobonos a médio prazo denominados em dólar do México. Estas taxas permitiram ao fundo ter mais êxito em encontrar compradores estrangeiros. Incorporada nas Antilhas Holandesas (Dutch Wet Indies) como Sovereign High -Yield Investment Co. N.V., suas acções foram listadas no London Stock Exchange. O subscritor, Merril Lynch, vendeu-os principalmente a famílias argentinas bem conectadas através do seu escritório em Buenos Aires, com o restante tomado principalmente por brasileiros e outros compradores latino-americanos. O seu dinheiro foi investido em títulos de alto rendimento dos seus próprios governos. A ironia era que os pagamentos exorbitantes de juros feito em 1990 eram devidos em grande parte à fuga de capital argentino e a famílias brasileiras a operarem offshore num "fundo ianque". O facto de isto ter sido montado offshore significava que a nenhum investidor americano era permitido comprar as suas acções. Os maiores investidores foram políticos bem informados que compraram do fundo sabendo que os seus bancos centrais pagariam as suas dívidas em dólar apesar dos altos prémios de risco. Enquanto estes oligarcas legais apareciam nas estatísticas dos seus países como "credores de dólares" exploradores, demagogos internos culpavam os ianques, o FMI, o Banco Mundial e banqueiros britânicos por aplicarem austeridade financeiras aos seus países. Ainda que a dívida em dólar da Argentina no princípio da década de 1990 fosse possuída principalmente por argentinos a operarem fora a partir de centros bancários offshore. Os maiores beneficiários do serviço da dívida externa foram os seus próprios capitalistas voláteis, não possuidores de títulos na América do Norte e na Europa. Para a Argentina, um "estrangeiro" era provavelmente um oligarca local a operar de uma conta offshore invisível para o seu governo (o qual era constituído em grande parte por suas próprias famílias). Pode-se encontrar o mesmo fenómeno na Rússia de hoje, onde um "investidor estrangeiro" tende a ser um russo com uma conta offshore a operar a partir de Chipre, da Suíça ou do Lichtenstein, talvez em partenariato com um americano ou outro estrangeiro para camuflagem política. SS: Como actuou o fundo? MH: No seu primeiro ano de operação tornou-se o segundo maior em termos de desempenho mundial (um fundo imobiliário australiano estava em primeiro lugar). Os investidores globais logo entraram em acção pois observaram a oligarquia financeira latino-americana a reciclar o seu próprio capital volátil dolarizado de volta para os seus países de origem via enclaves offshore. Entretanto, o fundo com que estive associado estava limitada a uma duração de apenas cinco anos, porque em 1989 parecia-me que este era todo o espaço de tempo disponível para manter a sucção do rendimento do terceiro mundo até que uma nova crise assomasse. Quando este período de tempo foi ultrapassado, em 1994, os tesobonos do México tornaram-se de tal forma favoritos dos investidores que a sua taxa de juros caiu abaixo dos 10 por cento. O país estava a vender o seu sistema telefónico e outras empresas públicas e os rendimentos das vendas estavam temporariamente a encher as reservas de divisas externas do banco central — foi o último acto da ditadura do PRI no governo antes de perder a presidência. Mas o México balouçou-se à beira do default na crise do peso naquele ano, apenas uma dúzia de anos depois de ter desencadeado a "debt bomb" da América Latina em 1982 ao anunciar que não podia cumprir o serviço da sua dívida externa. A administração Clinton "resgatou" o México, ou melhor, o secretário do Tesouro Robert Rubin resgatou os seus credores. SS: Assim, finalmente, especuladores com títulos em dólar do terceiro mundo perdem. MH: Eles não foram os únicos. O processo envolveu fuga capital a ser transformada numa herança da dívida externa oficial. A Argentina estava mesmo convencida a juntar-se às fileiras do Panamá e da Libéria dolarizando a sua economia. Ao invés de criar crédito interno por si própria incorrendo em défices orçamentais, como os outros países fazem, o seu governo emitiu um enorme volume de títulos pagáveis em dólares. As suas taxas de juros caíram abaixo do nível de 10 por cento pois os investidores nos países credores queriam acreditar que o segredo da solvência monetária fora descoberto. Dólares estrangeiros foram emprestados para financiar políticas internas. Enquanto isso, o declínio nas taxas de juros resultante do aumento na "confiança" na loucura da Argentina proporcionou ricos ganhos de capital para investidores que haviam comprado os títulos a um preço tão baixo que eles rendiam quatro ou cinco vezes mais em retorno. Mas o que é confiança, depois de tudo, senão uma oportunidade para jogar o jogo da confiança — um jogo em que os subscritores financeiros afiaram as suas qualificações durante séculos! O fundo Scudder e outros investidores iniciais venderam os seus títulos para os novos fundos mútuos e outros compradores inexperientes em relação ao risco internacional durante a efervescência dos anos 90, quando todos tentavam superar os retornos dos outros, pouco importando para onde o longo prazo estava a conduzir. Isto promoveu um desnecessário endividamento estrangeiro, cujo colapso hoje ameaça apartar a Argentina para longe dos outros países. Então, em 2002, a pirâmide da dívida entrou em colapso, e os títulos agora mergulharam no fundo. Isto limpou uma porção substancial de "más poupanças" ("bad savings") que eram as contrapartidas contabilísticas destas dívidas más. ALGUMAS ALTERNATIVAS POLÍTICAS SS: Quanto dinheiro nestes centros é fuga de capital e dinheiro de evasão fiscal? MH: A coisa notável é a extensão em que os investidores tem feito uso destes centros legalmente. Ao patrocinar o eurodólar, por exemplo, o governo britânico encorajou a criação de entrepostos para evitar o fisco em algumas das ilhas localizadas no inóspito English Channel e Mar do Norte. Pelo simples acto de registar a propriedade do seu imóvel em uma destas ilhas, permite-se aos proprietários britânicos que evitem pagar impostos sobre ganhos de capital, pois estes não são cobrados aos investidores "estrangeiros". SS: Qual é a diferença entre um esquivador (avoider) fiscal e evasor (evader) fiscal? MH: É legal utilizar as leis existentes para minimizar um passivo fiscal. Um evasor fiscal é alguém que viola a lei fazendo falsas declarações ou envolve-se em complexas operações financeiras que não tem nenhuma função económica excepto evitar pagar impostos. SS: Assim, a lógica britânica era a mesma dos EUA na década de 1960: precisava do dinheiro, sem importar de onde viesse. Isto acabou por tornar mais fácil evitar impostos MH: A lógica era que a libra esterlina precisa de investimento estrangeiro para aguentar sua taxa de câmbio. O efeito principal, entretanto, foi proporcionar favoritismo fiscal para grande investidores internos em oposição aos proprietários de lares ou pequenos investidores que não abriam contas no exterior. Um investidor britânico pode montar uma corporação de fachada nestes enclaves e evitar pagar impostos sobre ganhos de revenda sobre a sua terra e edifícios, acções e títulos ou outros activos. É tudo perfeitamente legal, pois qualquer país tem o direito de cobrar — ou não cobrar — impostos sobre a riqueza, ganhos de capital ou rendimento. Visto que os ganhos de capital tendem a superar o crescimento do rendimento ganho, o papel económico de tais centros offshore torna-se central para a acumulação global. Como a inflação global dos activos ganhou momento durante as década de 1980 e 90, a atractividade de tais centros aumentou proporcionalmente. Isto significa que os economistas dificilmente poderão analisar o crescimento e polarização da riqueza nacional e global sem levar em conta a teia de obrigações e passivos financeiros associada a estes centros. SS: Mas há um crescente revestimento de ilegalidade, não é? MH: Certamente, mas foi fundido nos "invisíveis" na media em que as estatísticas económicas são afectadas, e a teoria económica também para este assunto. O crime é um dos sectores chave para os quais não são feitas estimativas. Ainda que seja talvez o mais líquido, pois ditadores e cleptocratas, ladrões e traficantes de droga receiam amarrar-se aos seus activos de forma visível. As mais novas adições à classe mundial dos rentistas, eles tornaram-se uma fonte de liquidez para as economias de hoje. A Rússia sofreu uma fuga de capitais de US$ 25 mil milhões por ano desde 1990. O seu empréstimo de emergência (bailout loan) do FMI de Agosto de 1997 desapareceu num obscuro banco nas Ilhas do Canal britânicas, de onde foi reenviado para Chipre, Suíça e Estados Unidos. A maior dos empréstimos do FMI para a África e América Latina foi plenamente absorvido pelas fugas de capitais, subsídios estes dados sob o eufemismo de "estabilização da divisa". O que está a ser estabilizado é sobretudo a taxa a que esta fuga de capitais e cambiada por divisas duras (se alguém ainda pode chamar os dólares de divisas duras). SS: Como os governos podem conter este truque para taxar este dinheiro? MH: É o que está a ser debatido na Rússia nestes dias. Parece que a única espécie de imposto que pode ser colectado das multinacionais hoje é o imposto sobre o que é visível, não o que é invisível — isto é, invisível para o estatístico da economia nacional e a repartição de colecta de impostos. Os russos estão a discutir uma medida para cobrar impostos do excesso de lucros aos exportadores de petróleo e minérios. SS: Se examinarmos as folhas de balanço como elas aparecem, os centros bancários offshore surgem como credores líquidos e o resto dos países do mundo com devedores líquidos? MH: Não exactamente. Os "poupadores" que têm contas nestes centros bancários offshore têm direitos sobre eles que, por sua vez, representam os passivos destes enclaves que compensam os seus direitos sobre o resto do mundo. Mas os direitos financeiros possuídos por estes paraísos são possuídos por sua vez pelos seus "poupadores" offshore. O que está faltando nos dados que deveriam estar ali são os direitos destes "poupadores" — os esquivadores fiscais, criminosos e assim por diante — sobre estes paraísos fiscais, classificados em termos de seus países de origem. Estas poupanças sub-reptícias ficam perdidas na linha de "erros e omissões" do FMI. É por isso que as Índias Ocidentais Holandeses, por exemplo, podem possuir dinheiro numa empresa panamenha, a qual possui dinheiro numa empresa da Ilha do Canal, e assim por diante. Os requerentes (claimants) finais do hot-money são difíceis de identificar. Entradas de depósitos nestes enclaves têm a sua contrapartida na folha de balanço no seu próprio crescente endividamento para com esquivadores de impostos e fujões na Europa, América do Norte e do Sul, Ásia e África. Mas as estatísticas são silenciosas sobre quem são realmente estes "poupadores" invisíveis e onde eles realmente residem. Um exportador argentino ou russo vende a preço facturado ficticiamente baixo, pedindo ao comprador que deposite a diferença numa conta bancária offshore. É desnecessário dizer que o argentino ou russo não declarará este haver, assim ele não aparece nas contas oficiais. Mas existe na realidade. É por isso que as dívidas relatadas do mundo excedem as poupanças locais por uma margem de "erros e omissões". SS: Como exactamente funciona esta facturação falsa? MH: De duas maneiras. A mais simples é os importadores dizerem que pagam mais por importações do que o seu verdadeiro preço económico. Isto é o que fazem as companhias de petróleo quando apreçam o petróleo bruto tão alto para as suas refinarias que estas não têm margem para relatar um lucro, década após década. A imagem espelho desta fraude ocorre quando os exportadores afirmar receber menos do que eles realmente são pagos. A margem é o que eles são capazes de roubar. O comprador tipicamente pagar a diferença para uma conta "privada" em um dos centros bancários offshore, facilitados por um dos bancos americanos, britânicos ou canadianos montado para este fim. Este é o significado da "privacidade" bancária. É como se exportadores russos de petróleo, alumínio e outras matérias-primas ocultassem o seu rendimento real do governo russo. Isto explica a emergência de tantos multi-bilionários pós-soviéticos que se beneficiam de "enriquecimento inexplicado". SS: Isto não quer dizer que o governo russo ainda colecte a maior parte dos seus impostos com o petróleo e outras exportações de matérias-primas? MH: Sim, mais deixa de aplicar imposto ao rendimento real. Se fizesse isto, o sr. Khodorkovsky e outros cleptocratas não teriam subitamente ascendido para se juntarem às fileiras dos indivíduos mais ricos do mundo em apenas uma única década, e não estaria agora sob processo por evasão fiscal criminosa. É significativo que a imprensa financeira no Ocidente escreva editoriais angustiados a acusar isto de representar nada menos que fascismo com camisas castanhas, nacionalismo e totalitarismo. Falcões da administração Bush, como o secretário de Estado Powell, exprimem publicamente a sua preocupação de que isto ameace os próprios fundamentos da "empresa privadas". Isto mostra quão pouco eles pensam em punir a evasão fiscal nos seus próprios países. SS: Suponho que iremos cobrir estas maquinações com maior pormenor na nossa próxima entrevista sobre a Rússia após a sua eleição presidencial de 14 de Março. Retornando ao tópico dos centros bancários offshore, está o sr. a descrever uma técnica que foi desenvolvida simplesmente por indivíduos, ou foi institucionalizada num plano mais elevado, em escala mundial? MH: As maiores firmas de contabilidade e de advocacia da América do Norte e da Europa obtêm uma proporção crescente do seu rendimento ministrando conselhos a companhias que procuram utilizar estas tácticas. Os utilizadores primários são gestores de dinheiro e corporações importantes a fim de esconder os seus lucros (ou perdas, no caso da Enron e da Parmalat) da vigilância das autoridades nos seus próprios países. Nos anos 1990, a Enron, a Parmalat e outros gigantes corporativos criminosos foram capazes de organizar as maiores fraudes financeiras da história utilizando finanças estruturadas envolvendo paraísos hot-money. SS: Não há uma lei americana contra arranjar uma prática de negócios complexos unicamente para o propósito de evadir o fisco? MH: A lei está realmente nos livros, e os IRS queixou-se especificamente de que a firma KPMG organizou esquemas sistemáticos de evasão fiscal. Mas os neoliberais colocaram os seus próprios administradores ideológicos nestes agências, homens que se vangloriaram para mim do facto de que simplesmente se recusam a regular para "matar a besta", isto é, o governo, o qual é suposta ser o cérebro guiador da economia. A sua não-acção corrompeu o sistema legal e regulamentar nacional, desactivando-o. O poder está a ser exercido pelos contribuidores da campanha cuja riqueza convenceu os políticos a darem aos evasores fiscais o direito de votar contra qualquer agência regulamentar que se mostre demasiado consciente quanto à aplicação da lei, acima de tudo do código fiscal. SS: O que há quanto ao Procurador-Geral de Nova York, Eliot Spitzer? MH: Ele obviamente reconhece o que está em andamento, e parece ter ficado espantado ao descobrir quão longe foi o apodrecimento. O que ele descobriu quando apresentou acusações de crime contra a Arthur Andersen no caso Enron foi que todas as grandes firmas de contabilidade estavam empenhadas nas mesmas práticas fraudulentas. Isto criou um problema prático para ele. Iria ele fechar todas as firmas de contabilidade aplicando-lhes a lei de cabo a rabo? Se ele tivesse feito isto, quem teria auditado os livros das companhias dos EUA? Isto teria esmagado o mercado de acções e toda a economia. Assim ele contentou-se em penalizar os bancos e as firmas financeiras e de contabilidade numa muito pequena porção dos seus ganhos, deixando seus sócios com a sua confortável aposentadoria conquistada e fazendo-os prometer parar de infringir a lei no futuro. Por outro lado, penso que mesmo que ele tivesse fechado estas firmas — e, lembro, trabalhei para a Arthur Andersen e descobri que era inteiramente venal já na década de 1960 — o sistema ter-se-ia curado a si próprio quase da noite para o dia. As firmas existentes como tais teriam sido varridas e muitos dos seus principais sócios teriam ido para a cadeia — provavelmente não mais do que umas poucas centenas — ou pelo menos teriam perdido as suas aposentadorias com pagamentos de subornos. Mas a maior parte destes contabilistas remanescentes ter-se-ia reunido para criar novas firmas, livres das manchas de corrupção que caracterizaram a Deloitte Touche no caso Parmalat, a KPMG por seus esquema de evasão fiscal, e outras firmas de contabilidade por aí abaixo, SS: Quão profundamente os problemas podem ser investigados? MH: O caminho que conduziu a este estado de coisas foi aberto no fim da Segunda Guerra Mundial. Os diplomatas americanos pressionaram o Fundo Monetário Internacional pela livre movimentação de capitais, num tempo em que era muito claro que a maior parte dos movimentos de fugas de capital seria em direcção ao dólar, para fora das economias que estavam regulamentadas. Eufemizado como "reforma económica" e "liberdade de escolha", o movimento em direcção ao descontrole financeiro abriu o caminho para o desenvolvimento de paraísos offshore. Isto fazia parte do viés fatal construído dentro do DNA do sistema Bretton Woods do pós-guerra. O governo dos EUA permaneceu no controle, e como expliquei anteriormente, quando a Guerra do Vietnam empurrou a balança de pagamentos para o défice, o governo encorajou os grandes bancos a montarem ramos nestes enclaves ilhéus a fim de actuarem como receptadores que facilitassem o roubo global, a fraude global e outras actividades criminosas globais. Tem sido através das suas operações de utilização fácil que o mundo não-criminoso — o mundo de homens e mulheres honestos, indústria, comércio e mesmo governos soberanos — se tem tornado cada vez mais endividado para com os delinquentes, assim como os contribuintes estão cada vez mais endividados com para com os esquivadores de impostos. Grande parte da dívida externa líquida dos EUA, assim como aquela de países como a Argentina, é possuída por estes centros de capital volátil. Isto já se tornou o significado de "globalização" na sua dimensão financeira. Indiquei acima que as entradas de depósitos nestes paraíso são relevadas nas estatísticas oficiais de outros países como "erros e omissões". O mais importante fenómeno económico do mundo que determina as taxas de câmbio hoje foi relegado para a economia "negra" não observável — não apenas o crime, mas o que está a tornar-se a massa dominante de riqueza corporativa e pessoal. É mais invisível hoje do que nunca, a fim de evitar os olhos de acusadores e autoridades fiscais. É notável que os neoliberais louvem este fenómeno ao invés de denunciá-lo. O resultado tem sido criar uma situação em que, se alguém tem de possuir terra, outros activos tangíveis, ou títulos financeiros, o melhor caminho para evitar os impostos ou a tomada é registá-los em nome de procuradores offshore. O passo seguinte destas entidades offshore é emprestar este dinheiro de volta para si próprio, cobrando suficientes juros para absorver o anterior rendimento imponível. Operadores suficientemente grandes para montarem a sua própria companhia de seguros podem tratar como perdas o remanescente do seu rendimento como pagamentos de seguros fiscalmente dedutíveis à sua entidade offshore criada para este fim, juntamente com os habituais encargos de desnatamento por taxas administrativas para os proprietários e gestores seniors. Operadores financeiramente refinados enviam o seu dinheiro offshore e então tomam-no emprestado de volta, pagando suficientes juros, seguros e taxas administrativas para si próprios a fim de absorverem os seus rendimentos e torná-los assim livres de impostos. Estes pagamentos gastos consigo próprios aparecem no rendimento nacional e nas estatísticas fiscais como um custo de fazer negócios, ao passo que as estatísticas de balança de pagamentos mostram-nos como um fluxo internacional por "serviços" sob a rubrica de "invisíveis". Assim as estatísticas tornam-se cada vez mais ficcionais. SS: O sr. descreveu como o crescimento destes centros tem levado as estatísticas económicas a perderem o seu valor. Como pode a economia ser analisada e quantificada sob tais condições? MH: Os paraísos financeiros ajudam os rendimentos e os ganhos de capital a desaparecerem das estatísticas das economias nacionais como fuga de capital, só para reaparecerem como dívidas possuídas por economias vitimizadas por operadores "estrangeiros" fora destes enclaves. As suas transações aparecem na balança de pagamentos como "erros e omissões". A maior parte dos economistas sabe que isto é um eufemismo para "movimentos de capital a curto prazo", expressão que é ela própria um eufemismo para fugas de capitais e evasão fiscal. A percepção básica é que aquilo que alguém pode evitar declarar às autoridades nacionais não será regulamentado, imponível ou processado. A estratégia de acordo com estas linhas reflecte décadas de lobbying das mais ricas companhias e indivíduos do mundo no sentido de desmontar a capacidade dos seus governos para aplicar-lhes impostos. Firmas de contabilidade, gabinetes de juristas e bancos globais ajudam-nos utilizando "finança estruturada" para esconder seu rendimento e riqueza — bem como suas dívidas e fraudes financeiras. Quanto mais desonesto o cliente, maior a taxa que pode ser cobrada para que o conselho a ser orquestrado garanta privacidade. Numa sociedade onde o crime rende mais do que a maior parte das profissões honestas, a perícia financeira e bancária é de contratar. Os peritos irão trabalhar satisfeitos para a Enron e a Parmalat, salvando a sua consciência com a crença de que tudo isto é parte do mercado livre que promove a civilização e deixa o comunismo à beira da estrada na luta da economia mundial pela existência entre sistemas competidores. A simbiose entre centros bancários offshore e riqueza oligárquica, cleptocrática e criminosa pode ser detectada nos processos que têm embelezado as primeiras páginas da imprensa internacional nos últimos anos. As maiores bancarrotas em anos recentes envolveram maquinações através de tais centros. No caso da bancarrota da Parmalat, a defesa legal da parte dos auditores da companhia, Deloitte and Touche, é que eles não tinha maneira razoável de saber que os US$ 4 mil milhões em alegados depósitos numa conta offshore do Bank of America realmente não existiam. Outros personagens deste universo predatório do capital volátil são as entidades offshore criadas pela Arthur Andersen e pelo Citibank para a Enron, os renomados bancos suíços por servirem Idi Amin e outros senhores da guerra, e o Bank of New York e seus irmãos que ajudaram os oligarcas da Rússia a roubarem US$ 250 mil milhões na década de 1990. Uma vez que estes truques fiscal são explicados em pormenor, os leitores atentos podem reconhecer que o que está a ser descrito é como as multinacionais de hoje são tipicamente estruturadas para extrair rendimentos e minimizar (isto é, evitar) impostos. Economistas desde John Maynard Keynes tem utilizado a palavras "fuga" ("leakage") para descrever fundos retirados da correntes de rendimentos internos. O termo implica que o dinheiro está a ser perdido, e naturalmente é perdido para o colector dos impostos. Mas ele não desaparece simplesmente. Colocado nos centros anti-governo do mundo, o capital em fuga impõe-se como um poder credor que está a endividar a América do Norte, Europa, Ásia e África, sugando o seu excedente financeiro de maneiras que permanecem invisíveis para a maior parte dos estatísticos e economistas, políticos e eleitores. SS: O sr. pinta um quadro desencorajador. O que aconteceria se se tentasse cobrar impostos sobre o rendimentos das corporações, das finanças e tudo o mais, se as transações com estas ilhas fossem simplesmente encerradas. MH: Uma opção está na verdade a ser forçadas. Se estes paraísos da trapaça fiscal não forem fechados, as únicas pessoas deixadas para os impostos serão a classe média e os empregados. As companhias agora preenchem dois conjuntos de contas anuais. Um para os seus accionistas, e outro para o colector dos impostos. A conta de impostos não mostra lucro, porque as companhias não os querem pagar. O relatório para os accionistas mostra um lucro máximo, porque as companhias querem promover o preço das suas acções. Os votantes têm eleito políticos cujas campanhas eleitorais são pagas pelos lobbies que são contratados para mobilizar apoio a esta política, enquanto as direcções académicas são estimuladas a contratar loucos bem intencionados ou "idiotas úteis" para ensinar esta filosofia anti-governo como representativa de "reforma" positiva ao invés de pintá-la como rematado parasitismo. O público está a ser enganado de duas formas. Antes de tudo, aos governos são dados retornos que mostram lucros a contraírem-se, através de contabilidade artificial que se torna a base para as estatísticas oficiais. Enquanto isso, os accionistas estão a ser ministradas de estórias de altos lucros fictícios, pelo menos nos casos da Enron e da Parmalat. Os clientes deste mundo desta ilha flutuante mundial utilizam um sistema que tem sido posto em prática pelos pilares da integridade nos negócios representativos do núcleo da economia nuclear, não meramente um grupo do submundo periférico. Estes enclaves pertencem ao centro da análise económica, ainda que eles habitualmente sejam tratados como uma anomalia e não como um órgão integral da acumulação de riqueza moderna. SS: Como podem estes centros offshore ser fechados? A lei diz que não se pode punir ou penalizar pessoas que seguem as leis que vigoram no momento. Não se pode estabelecer penalidades retroactivamente. MH: Não é preciso isso. As leis contra fraude, roubo e evasão fiscal tem estado nos livros desde há muitos anos, embora muitas destas leis não tenham sido aplicadas seriamente. Uma das leis mais fáceis de aplicar é o princípio do "enriquecimento inexplicado". Isto é, deste modo, como as grandes fortunas do mundo foram criadas — é o que Putin está a aplicar contra o sr. Khodorkovsky. Os bancos nos Estados Unidos, Canadá, Europa e Ásia concordariam em não reconhecer transferências de depósitos a partir destes centros. As companhias e as casas de corretagem recusariam pagar dividendos endereçados a eles. Os países estabeleceriam regras para legitimar a propriedades destes depósitos, acções corporativos ou outros direitos financeiros. Uma pergunta padrão seria sem dúvida perguntar como alguém chegou a obter haveres nestes centros. Foi esta riqueza obtida a partir de um rendimento normal? Se não, como? Uma solução mais ampla seria simplesmente não reconhecer direitos de bancos e credores destes centros. Isto seria um começo de repudio das dívidas más (bad debts) mundiais. SS: Isto teria ser feito subitamente, com certeza. Será melhor deixar este contexto mais amplo para uma futura entrevista. _______________ [NT]: Hot money: Expressão que designa as aplicações de curtíssimo prazo em títulos ou em divisas atraídas por taxas de juros elevadas ou diferenças cambiais significativas. Tais apliações podem deslocar-se rapidamente de um mercado para outro e provocar grandes turbulências numa economia nacional, tanto por ocasião da entrada como da saída destas massas de recursos financeiros. [*] O professor Michel Hudson é economista financeiro independente e actua na Wall Street. Depois de trabalhar como economista especializado em balança de pagamentos para o Chase Manhattan Bank e para a Arthur Anderson na década de 1960, lecionou finanças internacionais na New School em Nova York. Actualmente é Distinguished Professor of Economics na Universidade do Missouri (Kansas City). Publicou numerosos trabalhos acerca da dominância financeira dos EUA. Também foi conselheiro económico dos governos canadiano, mexicano, russo e americano. Seus livros incluem Trade, Development, and Foreign Debt (Pluto, 1992, 2 vols.). É autor do livro Super Imperialism — The Origin and Fundamentals of U.S. World Dominance (Pluto Press, 2003, 425 p., ISBN 0-7453-1989-0). O seu sítio web está em http://michael-hudson.com/indexbody.html . Do mesmo autor resistir.info publicou também Irá a Europa sofrer da síndroma suíça? Standard Schaefer é jornalista económico independente, historiador, crítico literário, poeta e escritor de contos. Ensina no Otis College of Art and Design. É editor de não-ficção da New Review of Literature . Seu email é ssschaefer@earthlink.net . © 2004 Hudson and Schaefer, from book-in-progress. For fair use only/ pour usage équitable seulement. O original encontra-se em http://www.globalresearch.ca/articles/HUD403A.html . Tradução de JF. Esta entrevista encontra-se em http://resistir.info .
30/Mar/04

Via: http://www.resistir.info/eua/offshore_banks.html

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