Artigos de apoio

terça-feira, 11 de março de 2008

O ESPECTRO DO MANIFESTO

O ESPECTRO DO MANIFESTO

A propósito dos 150 anos de uma teoria da acção revolucionária

Álvaro Bianchi
Mestrando em Sociologia na Universidade Estadual de Campinas


No dia 27 de Janeiro de 1848, o deputado conservador Alexis de Tocqueville discursou na Câmara dos Deputados da França alertando o regime sobre os perigos que corria. Segundo Tocqueville, um ameaçador fluxo de ideias perturbava a paz social. Nas classes operárias, embora ainda tranquilas, ganhavam força ideias que questionavam os governantes e, terror dos terrores, a propriedade privada. “Tal é, senhores, minha convicção profunda: creio que dormimos no momento em que estamos sobre um vulcão”, concluiu o deputado sob vaias e protestos.1 Mal se passaram outros 27 dias daquele ano e o vulcão explodiu.
Uma revolução derrubou estrepitosamente o rei Luís Felipe e proclamou a República. O povo ocupou a Câmara e, da mesma tribuna que poucos dias antes havia usado o deputado conservador, discursou contra os governantes e a propriedade privada.
A revolução espalhou-se como um rastilho de pólvora. Em poucos dias a Europa inteira estava convulsionada, atingindo até mesmo boa parte da pacata Alemanha, a terra de Karl Marx e Friedrich Engels.
É a perspectiva de uma revolução eminente o que explica os passos dados para uma unificação entre o Comité de Correspondência de Bruxelas, do qual Marx e Engels faziam parte, e a sessão londrina da Liga dos Justos.2 Os contactos dos dois com o grupo de Londres existiam desde 1846. Em Fevereiro daquele ano propuseram a um dos dirigentes da esquerda do movimento cartista, George Julian Harney, a constituição de um Comité de Correspondência naquela cidade. Engels conhecia Harney desde 1843 e desde 1845 colaborava no seu jornal, The Northern Star.
O líder cartista, que recém havia formado uma organização chamada Fraternal Democrats, unificando a ala esquerda do cartismo com a Liga dos Justos, respondeu afirmativamente, mas propôs que os dirigentes da Liga fossem consultados antes de qualquer iniciativa. O contacto foi realizado em Maio e rendeu bons frutos. Numa carta de 6 de Junho, o líder da Liga, Karl Schapper, comunicou a formação de um Comité de Correspondência, dirigido por ele mesmo, H. Bauer e Joseph Moll.
As relações, entretanto, não avançaram mais e ficaram congeladas, chegando Engels a levantar a hipótese de uma ruptura, até que a Liga dos Justos enviou a Bruxelas o relojoeiro Joseph Moll com a missão de estabelecer contacto directo com Marx e, posteriormente, com Engels, que se encontrava em Paris, e convidá-los para integrar a Liga. Este último resumira desta forma a missão de Moll: “Disse-nos que estava convencido não só da justeza geral de nossa concepção, mas também da necessidade de libertar a Liga das velhas tradições e formas conspirativas. Que se quiséssemos ingressar, dar-nos-ia, num congresso da Liga, a oportunidade de desenvolver nosso comunismo crítico num Manifesto que, em seguida, seria publicado como Manifesto da Liga; e que poderíamos também contribuir para a substituição da arcaica organização da Liga por outra nova, mais adequada à época e aos objectivos visados.”3
Marx e Engels, que consideravam que a classe operária alemã necessitava de uma organização para a propaganda, aceitaram o convite.
O primeiro Congresso, com a participação de Engels representando o Comité de Correspondência que havia constituído em Paris, ocorreu em Junho de 1847. O Congresso modificou o nome da organização, que passou a chamar-se Liga dos Comunistas, e discutiu os seus novos estatutos.
Só depois dos resultados concretos obtidos nele é que Marx decidiu participar de forma mais concreta, constituindo o círculo de Bruxelas da Liga dos Comunistas.
O segundo Congresso, levado a cabo em Londres nos meses de Novembro e Dezembro do mesmo ano, durou dez dias. Marx teve nele a oportunidade de expor as suas ideias e depois de um grande debate elas foram aceites por unanimidade, segundo narra Engels.4 Na mesma ocasião Marx e Engels receberam a incumbência de elaborar “um programa detalhado do partido, ao mesmo tempo teórico e prático.”5
A redacção de tal programa foi antecedida pela discussão realizada nos círculos da Liga dos Justos e depois da Liga dos Comunistas. Duas mensagens do Comité Central da Liga dos Justos, pediam que os filiados discutissem a relação com os demais partidos e como os comunistas deveriam definir-se.6 Houve, também um projecto redigido por Karl Schapper, além de um de Moses Hess e outro de Friedrich Engels, conhecido como Princípios do comunismo.7
Destes textos, o que mais marcou o Manifesto Comunista, foi sem dúvida o de Engels. Embora preservasse a forma de perguntas e respostas, o texto introduz uma nova perspectiva no debate programático que a Liga dos Comunistas estava levando a cabo. A ideia de comunidade de bens, presente no programa de Schapper, foi abandonada e Engels discute, pormenorizadamente, a abolição da propriedade privada e os meios de levá-la a cabo.
Logo após o Congresso de Londres, Marx e Engels se separaram. Marx dirigiu-se a Bruxelas e Engels retornou a Paris. A redacção do Manifesto coube, assim, exclusivamente a Marx, mas a forte influência que Princípios do comunismo exerceu sobre o texto final, justificam plenamente que o nome de Engels esteja ao lado do de Marx como autor do Manifesto.


Superando os limites da teoria: a “inversão prática”

Foi naqueles dias que correram entre o discurso de Tocqueville e a queda de Luís Felipe, que o Manifesto Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels, o tal “programa pormenorizado” foi impresso e suas primeiras cópias começaram a ser distribuídas. Na França chegou tarde. Apenas três dias depois de ter começado a circular, o espectro do comunismo corria livremente pelas ruas de Paris.
O texto marca uma inflexão no pensamento de Marx e Engels. Na passagem de suas obras da juventude, ainda fortemente hegelianas, para aquelas nas quais realizam o acerto de contas com o seu passado, a dimensão prática era ainda afirmada apenas teoricamente.
Não nos podemos esquecer que já nas Teses sobre Feuerbach, Marx havia colocado a necessidade não só de interpretar o mundo como de mudá-lo.
A teoria da história que se faz presente em A ideologia alemã, tem em conta essa necessidade, mas ela ali aparece no seu momento abstracto, vinculando-se a uma teoria da revolução que se processa ainda na dimensão das forças produtivas e do modo de produção.
A luta de classe aparece como o resultado de um movimento histórico que dela independe. Ela é posta pela “contradição entre as forças produtivas e as formas de troca”, permanecendo externa a essa contradição. O mesmo ocorre com a revolução, que aparece, aqui, como resultado imediato e, tradução dessa contradição, resultado esse que se justifica historicamente, apenas pelo facto de suprimir a incompatibilidade presente, através da liberação das forças produtivas, daqueles entraves que impediam o seu pleno desenvolvimento.8
Têm razão, em certo sentido, aqueles que afirmam existir aqui boa dose de determinismo. Mas porquê somente em certo sentido? Pois justamente porque o determinismo existente, não é decorrente de uma equivocada apreciação da realidade, e sim da dimensão abstracta na qual a análise se desenvolve.9 A preocupação central desse texto é historiar a sucessão de modos de produção e identificar como, nessa história, o desenvolvimento das forças produtivas ocupa um lugar central. Tal empreitada pressupõe não só um elevado nível de abstracção, como um método de investigação que, precisaria ser complexificado para se tornar eficaz na análise de situações mais concretas.
Tal complexificação começa a ser levada a cabo em Miséria da filosofia.
Não é, e vale a pena alertar, apenas um refinamento metodológico, é, fundamentalmente, uma maior especificação do próprio objecto da análise.
As conexões entre as forças produtivas e as relações sociais, são interiorizadas no próprio processo produtivo, para dar conta da análise de um modo de produção específico, o capitalista. Surge então a luta de classes, não como resultado externo do movimento histórico, mas como parte desse próprio movimento.
Faltava pouco para dizer, que a história era a história da luta de classes.
No Manifesto Comunista, tal afirmação aparece com toda sua força. Ao fazê-la, Marx não está negando a sua elaboração anterior, nem os desenvolvimentos teóricos presentes em A ideologia alemã, está apenas fundando um nível mais concreto da análise.10
É a partir dessa afirmação, contida no programa da Liga dos Comunistas, que a teoria da história se une a uma teoria da acção revolucionária. Saímos finalmente das profundezas abstractas do desenvolvimento das forças produtivas, e da sucessão de modos de produção, e entramos num terreno muito mais específico e concreto.
Essa transposição de terreno permite, por outro lado, a transformação da teoria da revolução, numa teoria da acção revolucionária. Até então. tratava-se unicamente de deduzir os processos revolucionários das condições estruturais para eles necessárias. Assim como a teoria da história, a teoria da revolução adquiria também um carácter eminentemente abstracto.
Era uma teoria capaz de dar sentido àqueles abalos sociais, que uma vez por outra provocam profundas transformações na sociedade. Mas teorias é sabido, não fazem revoluções.
Até então, Marx e Engels tinham tratado de interpretar a revolução. Era chegado o momento de fazê-la, de mudar o mundo. O Manifesto completa a unidade entre a teoria da história e a teoria da revolução ao dar-lhes um carácter concreto. É o documento “que marca com exactidão o ponto de realização da ‘inversão prática’”, nas palavras de Mário Rossi, constituindo plenamente uma teoria da acção revolucionária, e franqueando o limite até então existente entre teoria e prática.11
Os autores do Manifesto só conseguem franquear esse limite, através da mediação do partido. É sua vinculação à Liga dos Comunistas, e por seu intermédio, ao movimento real da classe, e à revolução que se avizinhava, o que permite essa “inversão prática” e a constituição de uma teoria da acção revolucionária. Por outro lado, é só o nexo com essa teoria que permite ao materialismo histórico, desenvolver-se plenamente e ultrapassar aquele nível abstracto através do qual vinha se desenvolvendo. Se o Manifesto pode ser considerado um ponto de inflexão no pensamento de Marx e Engels, é porque essa inflexão, foi precedida de uma mudança na forma de agir de ambos.
Tal inflexão, ao mesmo tempo teórica e prática, é enunciada pelos próprios autores do Manifesto, que, rompendo com o utopismo que caracterizava os reformadores do mundo que pululavam à época, vinculam sua teoria à luta de classes: “As concepções teórica dos comunistas não se baseiam de maneira nenhuma, em ideias e princípios inventados ou descobertos por tal ou qual reformador do mundo. Elas não fazem mais que expressar, em termos gerais, as condições reais de uma luta de classes que existe, de um movimento histórico que se desenvolve sobre nossos olhos.”12
Acompanhemos Marx e o Manifesto para ver como isso ocorre.
O primeiro capítulo começa com a afirmação já mencionada sobre a luta de classes.13 A seguir, enumera as classes que ao longo da história se enfrentaram de forma ininterrupta, enfrentamento este que, sempre redundou numa transformação revolucionária da sociedade inteira, ou na destruição das forças em luta.
A sociedade burguesa também é marcada por esses antagonismos, muito embora eles tenham sido simplificados pela redução do número de classes em confronto a apenas duas: burguesia e proletariado.14
Enunciado o conflito, o Manifesto passa a descrever o papel revolucionário desempenhado pela burguesia, nascida no coração da Idade Média. Um papel que foi desempenhado no terreno da economia: “no curso da sua dominação, a burguesia criou as forças produtivas mais massivas e colossais, do que haviam sido criadas por todas as gerações passadas conjuntamente”. 15
Mas também no que diz respeito à política: “A burguesia desempenhou na história um papel eminentemente revolucionário. Onde quer que tenha dominado destruiu todas as condições feudais, patriarcais e idílicas”. 16
Até aqui, as forças produtivas encontram-se subordinadas a uma classe. A burguesia é a personificação delas, impondo-lhes um ritmo próprio até então inimaginado. Mas subitamente o texto sofre uma inflexão, as forças produtivas parecem libertar-se, e despersonificadas correm soltas, passando a comandar em seu auto-movimento o destino histórico.
A passagem é por demais conhecida, mas vale a pena citá-la: “os meios de produção e de troca, que servem de base à formação da burguesia, foram criados no interior da sociedade feudal. Num certo estágio do desenvolvimento desses meios de produção e de troca, as condições nas quais a sociedade feudal produzia e trocava, a organização feudal da agricultura e da manufactura, numa palavra, as relações feudais de propriedade, deixaram de corresponder às forças produtivas em pleno crescimento.
Entravaram a produção ao invés de fazê-la avançar. Transformaram-se em outras tantas correntes. Essas correntes precisavam ser rompidas: foram rompidas.”17
Esse esquema de interpretação, formulado inicialmente para explicar a transição do feudalismo ao capitalismo parece indicar, já no Manifesto, as condições de superação deste último. As forças produtivas que se rebelaram contra as relações de propriedade feudal, ameaçavam também rebelar-se contra as relações burguesas.
A citação é acompanhada de uma primeira teorização das crises capitalistas. Nascidas no interior da contradição entre o dinamismo das forças produtivas e a fixidez das relações de propriedade, estas crises, assumem a forma de crises de superprodução, que ciclicamente abalam o capitalismo, ameaçando a existência da sociedade burguesa. Determinismo? Naturalismo, como querem alguns autores? Onde foi parar a luta de classes, o tal motor da história?
Um novo giro brusco, e as classes reaparecem no texto do Manifesto, colocando as forças produtivas sob seu controle e personificando-as. Tal ocorre quando Marx e Engels se perguntam, a respeito da formas da burguesia vencer a crise provocada pela rebelião das forças produtivas. A resposta: “De um lado, impondo a destruição de uma massa de forças produtivas; por outro, lado pela conquista de novos mercados, e pela exploração mais intensa dos antigos”.18
E já nesta afirmação ocupa seu lugar de protagonista, um personagem que até então havia sido coadjuvante desse drama histórico: o proletariado. Primeiro, escondido sob a forma de força produtiva, para logo depois, ocupar um lugar explícito na famosa afirmação: “Mas a burguesia não somente forjou as armas que a levarão à morte; ela produziu os homens que manejarão essas armas — os trabalhadores modernos, os proletários”.19
E se ainda restam dúvidas, sobre o lugar ocupado na história do capitalismo por esse proletariado, vale lembrar, como Marx e Engels fazem, que ao mesmo tempo que se desenvolve o capital, a relação social fundamental da economia burguesa, desenvolve-se, também, a condição operária.20 Foi no longo caminho percorrido por esse desenvolvimento, que massas de trabalhadores modernos foram colocadas sob a disciplina da máquina, do capataz e, principalmente, do capitalista.
Constrangidos a venderem-se diariamente, esses trabalhadores vivem para trabalhar. Mas atenção, eles só trabalham na medida em que aumentam o capital. O seu destino está associado à permanente tendência que o capital tem a reproduzir-se, ampliando cada vez mais o seu alcance e aos desdobramentos dessa tendência: as crises comerciais recorrentes; a constante redução de salários, tendo em vista a concorrência intercapitalista; e o rápido aperfeiçoamento da maquinaria.
A contradição entre desenvolvimento das forças produtivas e relações sociais manifesta-se, com o máximo de vigor, na própria existência do proletariado. Mas os trabalhadores não assistem a tudo passivos. Reagem, criam associações permanentes e uniões contra a burguesia, organizam, enfim, a sua luta comum em defesa dos salários. De sua própria condição de classe surge a possibilidade de se afirmarem como classe universal. A sua emancipação só pode ocorrer, com a condição de fazer saltar pelos ares, todos os estratos superiores que constituem a sociedade burguesa. Só podem apoderar-se das forças produtivas, abolindo o modo de apropriação vigente e, por conseguinte, todo modo de apropriação já existente.
Temos, então, que aqueles que encarnam a contradição máxima do capitalismo são, também, os únicos capazes de resolvê-la.
Chegamos a um ponto crucial do texto: a transposição de uma teoria da história, numa teoria da acção revolucionária. A partir daqui, os seus autores discutirão como podem os trabalhadores cumprir aquele papel que a história lhes reservou.

Do Manifesto aos bolcheviques

Marx e Engels começam a definir uma teoria da acção revolucionária anunciando primeiro, como convém, os objectivos dos comunistas: “constituição do proletariado em classe, derrube da dominação burguesa e conquista do poder político pelo proletariado”. 21 Mas, a constituição do proletariado em classe não é, senão, sua constituição em “partido político”, como os autores do Manifesto já haviam feito notar.22
É claro que à época do Manifesto, ambos atribuem ao termo “partido” um duplo sentido. Por partido entendem as organizações da classe: a Liga dos Comunistas, a Associação Operária de Colónia, o jornal francês La Reforme, os cartistas ingleses e todos os movimentos da classe.
Mas para além dos movimentos da classe, o partido-organização, Marx e Engels referem-se à classe em movimento, o partido-consciência.23 A transformação do proletariado em sujeito auto-consciente e auto-organizado é entendida como pressuposto para atingir os objectivos seguintes: derrube da supremacia burguesa e a conquista do poder.
Constituição do proletariado em “partido político” é, de tal modo, a realização de seu devir. Devir esse que é realizado às custas de seu antagonista.
Uma vez derrubado o domínio burguês, e conquistado o poder pelo proletariado, este utilizará sua supremacia política “para arrancar pouco a pouco toda espécie de capital da burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado — do proletariado organizado em classe dominante — e para fazer aumentar, o mais rapidamente possível, a massa das forças produtivas.”24 Para tanto será preciso recorrer a uma violação do direito de propriedade, que Marx e Engels não hesitam em denominar de “despótica”, provocando calafrios em seus críticos liberais.
As medidas enumeradas pelos autores do Manifesto logo a seguir deveriam produzir, como resultado, esse progressivo debilitamento da burguesia.
Mas elas chamam a atenção para sua actualidade: expropriação dos latifúndios, abolição do direito de herança, monopólio estatal do crédito e dos transportes, ensino público e gratuito e impostos progressivos, entre outras mais prosaicas.
O programa não era um conjunto fixo e imutável de bandeiras e deveria ser adaptado às diferentes situações concretas. Havia uma clara diferença entre os países “mais adiantados”, como escrevem no texto do Manifesto, referindo-se, provavelmente, à França e à Inglaterra, e aqueles como a Alemanha nos quais ainda era preciso destruir os resquícios da opressão feudal. Marx e Engels foram os primeiros a concretizar o programa, escrevendo poucos dias depois do Manifesto as Reivindicações do partido comunista para a Alemanha. As reivindicações preservavam alguns poucos pontos do programa original, mas davam um peso muito maior às exigências democráticas como a constituição de uma república unitária e o voto universal para maiores de 21 anos.
A necessidade de adaptar a acção dos comunistas às diferentes realidades nacionais também aparece claramente no último capítulo do Manifesto — Posição dos comunistas frente aos diferentes partidos de oposição. Ao invés de uma atitude dogmática mostram os seus autores uma grande flexibilidade táctica: apoio aos movimentos operários de massa na Inglaterra e nos Estados Unidos; aliança com os democratas radicais na Suíça, luta comum com o partido da revolução agrária na Polónia.
Mas o caso que merece um maior destaque é mesmo o da Alemanha. É sobre ela que os comunistas “concentram acima de tudo sua atenção”. 25 Para ela Marx e Engels recomendam lutar juntamente com a burguesia sempre que esta agir revolucionariamente contra a monarquia absoluta e a propriedade feudal. Tal política pressupõe aceitar que a revolução democrática tão necessária para a Alemanha seria conduzida pela burguesia liberal.
Não é, de facto, outra a aposta que Marx e Engels idealizavam nas vésperas da revolução que começou no dia 18 de Março na Prússia. Este último, é claro, a respeito no seu Princípios do comunismo: “Na Alemanha, finalmente, só agora está iminente a luta decisiva entre a burguesia e a monarquia absoluta. Como, porém, os comunistas não podem contar com uma luta decisiva entre eles próprios e a burguesia, antes que a burguesia domine, o interesse dos comunistas é ajudar a levar os burgueses ao poder tão depressa quanto o possível, para, por sua vez, os derrubar o mais depressa possível”. 26
O esquema elaborado pelos autores do Manifesto apoia-se, claramente, na experiência da Revolução de 1789. Nela, no curso de um longo processo revolucionário, a sua fracção mais decidida e plebeia, aproveitando as condições criadas pela primeira fase da Revolução, conquistou o poder e implementou um programa de transformações radicais.
Marx e Engels esperavam que, principalmente na Alemanha, a revolução democrática e burguesa criasse as condições para a livre acção do proletariado. Conquistando a liberdade de imprensa, organização, associação e manifestação, os comunistas teriam desimpedido o caminho para lutar abertamente contra a burguesia.
Pronto; criada a confusão. Pois foi justamente apoiados na passagem citada acima que os mencheviques definiram sua política na Rússia do início do século, defendendo a realização de uma revolução democrática sob a direcção da burguesia liberal. É claro, logo a seguir, o Manifesto afirmava que em nenhum momento os comunistas deveriam deixar de despertar a consciência do violento antagonismo, que separa a burguesia e o proletariado. Mas isso não importava muito para Plekhanov, Dan e seus camaradas, nem para aqueles que revalorizam a acção dos mencheviques à época.
Contrariamente aos mencheviques, os bolcheviques afirmaram, a partir de Abril de 1917, que somente uma revolução operária e socialista, poderia dar conta das tarefas democráticas, deixadas para trás pela evolução histórica da Rússia. De tal modo que a revolução operária e socialista de 1917 não foi só, em certo sentido, uma revolução contra O capital, como afirmou António Gramsci num célebre artigo. Foi também uma revolução contra o Manifesto Comunista, feita em seu nome.
Erraram os bolcheviques, ou Marx e Engels? Nem uns nem outros. O que geralmente passa desapercebido, e passou de facto muito longe da cabeça dos mencheviques de então, é que a teoria da acção revolucionária desenvolvida por Marx e Engels em 1848 tem um carácter provisório. Tal carácter é definido pela transitoriedade da época vivida, uma época na qual a burguesia já não possuía o mesmo ímpeto revolucionário do século anterior, mas na qual o proletariado ainda não havia reunido forças suficientes para derrocar o domínio burguês. A meio caminho entre a revolução burguesa e a revolução proletária, as revoluções de 1848 fracassaram. Tais revoluções chegaram, por um lado, demasiado tarde; por outro, cedo demais. 27 Homens de sua época, Marx e Engels elaboraram uma teoria que expressava as contradições do momento vivido.
Os bolcheviques, por sua vez, identificavam as profundas mudanças ocorridas na fase imperialista do desenvolvimento capitalista: a integração das burguesias e dos mercados nacionais na arena internacional; a decadência da economia capitalista; o início de uma época de guerras e revoluções; a nova força do proletariado; o temor que a burguesia nutria de um levantamento operário. Tomando como ponto de partida as formulações originais dos fundadores do moderno socialismo, os bolcheviques souberam, como ninguém até então, romper com os dogmas e actualizar a teoria da acção revolucionária.
Se as expectativas depositadas por Marx e Engels no desempenho revolucionário da burguesia foram frustradas, o que permanece actual na teoria da acção revolucionária que ambos desenharam à época do Manifesto?

À guisa de conclusão apresentemos os principais pontos:

1. O óbvio ululante: permanece actual a necessidade de uma teoria, que seja expressão geral das condições reais de uma luta de classes existente, preservando a “inversão prática” realizada pelos autores do Manifesto.
2. A teoria deve materializar-se num programa revolucionário, que tenha como objectivo a violação do direito de propriedade, e das relações de produção burguesas, e não sua manutenção.
3. O proletariado continua a ser o sujeito social da revolução, única classe capaz de emancipar toda a sociedade e acabar com todo tipo de exploração.
4. A teoria da acção revolucionária é uma teoria “partidária”, na medida em que o partido político encontra nela um lugar de destaque. São estes os pontos que formam o espectro do Manifesto que anda hoje a assombrar tanta gente. E não é de estranhar que nos 150 anos do Manifesto Comunista, liberais e reformistas de todos os matizes, não se cansem de fazer menção à análise realizada pelo Manifesto, mas rapidamente acrescentam que seu programa e sua política não fazem o mínimo sentido. Nunca é demais frisar: a análise e a teoria da história fundada pelo Manifesto, só podem ser plenamente compreendidas à luz da teoria da acção revolucionária nele explicitada.

1 Alexis de Tocqueville, “Discurso pronunciado na Câmara dos Deputados, a 27 de Janeiro de 1848, na discussão
do projecto de declaração de voto em resposta ao discurso da coroa”, in, idem, A democracia na América, Belo
Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1977, p. 579.
2 Para uma história da Liga dos Comunistas, ver Friedrich Engels. “Contribuição à história da Liga dos Comunistas”,
in Karl Marx e Friedrich Engels, Obras escolhidas, São Paulo, Alfa Ómega, s.d., v. 3. Bert Andreas, La Ligue
des Communistes (1847). Documents constitutifs, Paris, Aubier, 1972. Karl Marx et alli., De la “Liga de los Justos”
al Partido Comunista, México D.F., Roca, 1973. Michel Löwy, La teoria de la revolución en el joven Marx, Buenos
Aires, Siglo XXI, 1972. O capítulo “Marx e o Partido Comunista (1846-1848)” pode ser encontrado, com algumas
modificações, em Teoria e Prática, 3, 1968, pp. 103-122. Também permanece importante o livro de Boris Nicolaïevski
e Otto Maenchen-Helfen, La vida de Carlos Marx, Madri, Ayuso, 1973.
3 Friedrich Engels, “Contribuição à história da Liga dos Comunistas”, op. cit., p. 160.
4 Friedrich Engels, op. cit., p. 161.
5 Karl Marx e Friedrich Engels, “Préfaces du Manifeste Communiste”, in Karl Marx, OEuvres. Economie I, Paris,
Gallimard, 1965, p. 1480.
6 “Dos alocuciones del Comite Central de la ‘Liga de los Justos’ a sus afiliados”, in Karl Marx et alli, De la “Liga
de los Justos” al partido comunista, México D.F., Roca, 1973.
7 O texto de Schapper pode ser encontrado em Bert Andreas, op. cit., pp. 123-141. O de Engels em “Princípios
básicos do comunismo”, in: Karl Marx e Friedrich Engels, Obras escolhidas, Lisboa, Avante, 1982, t. 1. Não temos
notícia de que o texto de Hess tenha sido preservado.
8 Karl Marx e Friedrich Engels, La ideologia alemana, Montevidéu, Pueblos Unidos, 1985, p. 86. Note-se que
Marx ainda não usa, aqui, a expressão relações de produção.
9 Uma instigante discussão sobre os níveis de abstracção presentes na obra de Marx pode ser encontrada no
capítulo quatro do livro de Étienne Balibar, A filosofia de Marx, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995.
10 Virou moda nos anos 70 contrapor essa afirmação àquelas que apontavam para a contradição entre forças
produtivas e relações de produção como o fundamento do acontecer histórico. Se marcamos as diferenças não
foi para contrapor uma a outra, mas para mostrar como elas se referem a níveis diferentes de abstracção.
11 A respeito da “inversão prática” ver Mário Rossi, La génesis del materialismo histórico. La concepción materialista
de la história, Madri, Comunicación, 1974, v. 3.
13 “A história de todas as sociedades até nossos dias é a história da luta de classes”. Idem, ibidem, p. 161.
14 A tese da simplificação da estrutura social é uma das mais carentes de atualização do Manifesto. Leon Trotsky
discute o tema em seu artigo “90 anos do Manifesto Comunista” (Escritos, Bogotá, Pluma, 1979, t. IX, v. 1).
15 Karl Marx e Friedrich Engels , “Le manifeste communiste”, op. cit., p. 166.
16 Idem, ibidem, p. 163.
O espectro do Manifesto
17 Idem, ibidem, p. 166.
18 Idem, ibidem, p. 167.
19 Idem, ibidem, p. 168.
20 Ver aqui as preciosas indicações de Mário Rossi, op. cit., p. 346.
21 Karl Marx e Friedrich Engels, “Le manifeste communiste”, op. cit., p. 174.
22 Idem, ibidem, p. 170.
23 Ver a esse respeito Etiénne Balibar, Marx, Engels e il partito, Critica Marxista, 6, 1976.
24 Karl Marx e Friedrich Engels. “Le manifeste communiste”, op. cit., pp. 181-182.
25 Idem, ibidem, p. 194.
26 Karl Marx e Friedrich Engels, Obras escolhidas, op. cit., t. 1, p. 94.
27 Ver a esse respeito Leon Trotsky, 1905. Resultados y perspectivas, Paris, Ruedo Ibérico, 1971, pp. 161-170.
Marx e Engels se aproximam respectivamente desse balanço em “A luta de classes na França”, in Obras escolhidas,
São Paulo, Alfa Ômega, s.d., v. 1, e em Friedrich Engels, Revolução e contra-revolução na Alemanha, Lisboa,
Avante, 1981.

Via : http://blog.revistaoutubro.com.br/

Sem comentários:

Acerca de mim

Colectânea de artigos