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quarta-feira, 9 de abril de 2008

Epicurismo

O Epicurismo

Painel Histórico

Ao perder sua liberdade política, dominada que fora primeiro pelos macedónios, a seguir pelos romanos, a Grécia antiga sofreu uma alteração profunda nos quadros dentro dos quais vinha desenvolvendo sua experiência cultural e, em particular, sua criação mais arrojada: a especulação filosófica.
Tornando-se parte do império fundado por Filipe da Macedónia e ampliado por seu filho Alexandre, o país passou a integrar um vasto organismo político, verdadeiro mosaico de povos. Tendem a se diluir as distinções entre gregos e orientais, distinções que, então, os primeiros orgulhosamente proclamavam e procuravam preservar.
Heródoto de Halicarnasso, historiador (circa 460 a.C. – 425 a.C.) mostrara que a raiz dessas distinções estava no senso de liberdade política que um grego possuía por pertencer a uma cidade-estado, cônscia de sua autonomia e de suas tradições, e onde, ao usufruir os direitos de cidadania, ele não estava submetido a nenhum senhor. O abismo entre os gregos do período helénico e os "bárbaros" orientais provinha, segundo Heródoto, da consciência de liberdade que os gregos desenvolveram a partir da peculiaridade de sua organização social e política. Essa consciência de liberdade está ilustrada, pelo historiador, no episódio dos dois espartanos que, por ocasião das Guerras Médicas, se apresentam voluntariamente aos persas para serem sacrificados como expiação pelo assassínio dos embaixadores de Xerxes. Indagados sobre os motivos que levavam Esparta insistia a resistir ao Grande Rei, rejeitando as vantagens da rendição e da submissão, os dois gregos respondem ao persa que os conduzia ao sacrifício: “Tu não podes compreender. Conheces apenas a vida de servidão. Jamais experimentaste a liberdade, para saber se ela é doce ou não. Do contrário, tu nos aconselharias a combater por ela não somente com a lança, mas também com o machado”.
Depois da batalha de Queronéia (338 a.C.), que marca a derrota dos gregos frente à Macedónia, a situação muda completamente. O desaparecimento da autonomia da cidade-estado torna sem sentido qualquer sentimento isolacionista. Mas, pelo fato mesmo de inserir-se no grande organismo político dos macedónios, a cultura grega se difunde, tornando-se património comum a todos os países mediterrâneos. Começa o chamado período helenístico, no qual, desde a morte de Alexandre até a conquista romana, a cultura grega vai progressivamente se impondo do Egipto e da Síria até Roma e Espanha. E se Atenas inicialmente permanece como centro da investigação científica e filosófica, outros focos de actividade intelectual passarão depois a se afirmar, particularmente Alexandria.
No período helenístico as ciências particulares começam a ter desenvolvimento autónomo, despregadas do tronco original da antiga sabedoria filosófica. O século III a.C. é o século de Euclides, de Arquimedes (287-212 a.C.) e de Apolónio de Perga (c. 262 - c.180 a.C.), um esplêndido século, portanto, para as matemáticas e a astronomia. Mas é também o século em que, no museu de Alexandria - cujo bibliotecário é o geógrafo Eratóstenes (275- 194 a.C.) -, ocorre grande desenvolvimento da crítica filosófica e das ciências baseadas na observação. Surge um novo tipo de intelectual, inexistente na fase helénica: o especialista, o erudito. E se isso representa um impulso às especializações científicas, manifesta também o novo rumo que tomara o conhecimento, desde que sua meta deixara de ser o universo político: o da realização subjectiva e pessoal, que acompanha o ideal de ciência pela ciência.
Em busca da serenidade

As novas condições impostas ao mundo grego tornam impossível a participação do indivíduo no governo da polis, que o cidadão helénico conhecera sobretudo na fase democrática. O conhecimento deixa de ser preparação para a actividade política (como fora em Platão), passando a se ocupar do aprimoramento interior do homem. Distanciada das preocupações políticas, a filosofia aspira ao estabelecimento de normas universais para a conduta humana e se propõe a dirigir as consciências: o problema ético torna-se o centro da especulação de diferentes correntes filosóficas.
As éticas helenísticas partem à procura do bem individual, de uma sabedoria que represente a plenitude da realização subjectiva: o alcance da perfeita serenidade interior, independente das circunstâncias. O bem não mais terá o sentido metafísico do Bem de Platão, fundamento das ideias, dos modelos do mundo corpóreo, e, consequentemente, sustentação tanto do sujeito do conhecimento e da acção quanto da própria realidade objectiva. O bem das éticas helenísticas terá acepção estritamente existencial: é o bem como sinónimo do que é bom para o indivíduo, para a vida de cada homem.
Para traçar o caminho que conduz à serenidade interior, algumas éticas helenísticas - o epicurismo e o estoicismo - partem de uma concepção do universo fundamentada racionalmente. Ao contrário do que propunha o socratismo, epicuristas e estóicos fazem da ciência sobre a natureza das coisas a base para as suas construções morais. Bem diverso será o itinerário prescrito pelo cepticismo, fundado por Pirro de Elis (360-270 a.C.): à imperturbabilidade de espírito só se chegaria partindo-se da suspensão de qualquer julgamento, renunciando-se a qualquer explicação científica, abandonando-se toda pretensão de alcançar certezas inatingíveis.
Outra corrente de pensamento que se manifesta no período helenístico é o ecletismo. Procurando um critério para a acção que escapasse às disputas das diferentes escolas, essa filosofa pretenderá estabelecer, para além das divergências, um “sentido comum”, um consenso universal. Tal forma de pensar teve larga aceitação na fase romana e Cícero foi seu mais eminente representante.
O carácter de religiosidade, que se tornará evidente no pensamento ocidental a partir do século I d.C., afirma-se antes em centros orientais da cultura helenística, como Alexandria. Manifesta-se então acentuada tendência à fusão ou ao sincretismo religioso. Ao mesmo tempo, ocorre o confronto entre duas tradições: a greco-romana, formulada através de filosofias dotadas de alto índice de racionalização, e a da religiosidade oriental, fundada - como no judaísmo e no cristianismo - na noção de verdade revelada. Os primeiros efeitos da repercussão do espírito religioso sobre a filosofia manifestam-se nos judeus-alexandrinos (do século II a.C. ao I d.C.), nos neopitagóricos e platónicos pitagorizantes (entre o século I a.C. e III d.C.) e nos últimos defensores do pensamento e da religião do politeísmo: os neoplatónicos do século II ao século VI d.C.
O neoplatonismo constituiu a mais perfeita manifestação de sincretismo religioso dessa época e teve em Plotino (204-270) seu principal representante. Para o neoplatonismo - canto de cisne do pensamento da antiga Grécia -, todos os seres resultariam de sucessivas emanações do Um, divino, transcendente e inefável. Antes de se calar, a filosofia grega medita sobre um último tema: o silêncio do Ser.

O jardim da amizade e do prazer

Nascido em 341 a.C., em Atenas ou em Samos, Epicuro teria acompanhado, dos catorze aos dezoito anos, os ensinamentos do académico Panfilo. E, através de Nausífanes de Teo, discípulo de Demócrito (c. 460 - 370 a.C.), teria conhecido as doutrinas desse grande atomista. Durante algum tempo ganhou a vida como professor de gramática. Em seguida deu cursos de filosofia, primeiro em Lampsaco, depois em Mitilene e Colofonte. Finalmente regressa a Atenas, por volta de 306 a.C., onde adquire uma pequena casa e abre uma escola de filosofia, que ficará conhecida como o Jardim de Epicuro.
Os alunos não têm em Epicuro um mestre no estilo tradicional: na verdade, formam um grupo de amigos que filosofam juntos. Epicuro exerce influência, não só pelo ensino directo como pela extraordinária personalidade. É um homem bondoso, de natureza terna e amável, que, apesar dos sofrimentos físicos impostos pela doença que o tortura e aos poucos o paralisa, cultiva as amizades, auxilia os irmãos e trata os escravos com civilidade. Por essa razão todos os que o conhecem dificilmente deixam seu convívio.
Epicuro foi intensamente venerado pelos seus primeiros discípulos, grandes admiradores seus. E cerca de dois séculos depois de sua morte - ocorrida em 270 a.C. - ainda será assim exaltado pelo poeta romano Lucrécio, seguidor e expositor de suas ideias: “Foi um deus, sim, um deus, aquele que primeiro descobriu esta maneira de viver que agora se chama sabedoria, aquele que por sua arte nos fez escapar de tais tempestades e de tais noites, para colocar nossa vida numa morada tão calma e tão luminosa”.
As tempestades e a noite a que se refere o poeta Lucrécio significam os temores e as perturbações que agitam o espírito humano e que Epicuro teria ensinado como vencer. “A morada tão calma e tão luminosa” seria a meta proposta pelo epicurismo: a morada da serenidade e do prazer. Com efeito, toda a ética de Epicuro representa um esforço para libertar a alma humana de equívocos ou de infundadas crenças aterrorizadoras. A filosofia, para Epicuro, deveria servir ao homem como instrumento de libertação e como via de acesso à verdadeira felicidade. Esta consistiria na serenidade de espírito que advém da consciência de que é ao homem que compete conseguir o domínio de si mesmo.
O autodomínio - objectivo de toda reflexão filosófica - exige a libertação do jugo das falsas opiniões e a conquista do conhecimento verdadeiro e seguro da realidade e da posição do homem dentro dela. Consequentemente, a filosofia pode ser dividida em três partes que se articulam. Em primeiro lugar, a lógica, que permitiria distinguir quais as formas de conhecimento verdadeiro, quais as falsas. Em segundo lugar - com base nas soluções indicadas pela lógica -, uma física que mostrasse a verdadeira estrutura da realidade na qual se insere o homem. A lógica e a física constituiriam, assim, as disciplinas preliminares a possibilitar a descoberta dos fundamentos da ética. Esta seria a terceira parte da filosofia e seu objectivo último, constituindo a chave para abrir as portas da felicidade.
A teoria do conhecimento dos epicuristas (que eles chamavam de canónica) é o empirismo, isto é, reduz toda a origem do conhecimento à experiência sensível. As repetidas experiências dos sentidos, preservadas pela memória, dariam nascimento às antecipações (em grego: prolepsis), equivalentes às noções gerais ou conceitos. Quando se ouve a palavra homem, por exemplo, antecipa-se a presença real e efectiva de um homem, sem que o mesmo esteja sendo apreendido de fato por qualquer dos sentidos. As prolepsis teriam a função de classificar as experiências e fixar seus limites de variação. Seriam em si mesmas verdadeiras, pois simplesmente registam e preservam as diferenças e semelhanças encontradas na experiência sensível.
A fonte da verdade

Depois que se possui um número suficientemente grande de prolepsis, podem-se formar juízos, verdadeiros ou falsos. A verdade de um juízo pode ser provada, segundo os epicuristas, de duas maneiras. Quando o juízo diz respeito a algo observável pelos sentidos, o critério é pura e simplesmente a concordância entre o juízo e os fenómenos sensíveis correspondentes. O segundo critério de verificação da verdade de uma proposição refere-se aos juízos sobre fenómenos não passíveis de observação através dos sentidos. Nesse caso diz-se que uma certa proposição é verdadeira se não entrar em contradição com outros dados fornecidos pela experiência (critério da não-infirmação). Os fenómenos adoptados como prova são apenas signos de uma realidade invisível. Por exemplo, segundo a doutrina atomista, adoptada por Epicuro, “todos os corpos, por mais compactos que sejam, possuem interstícios vazios dentro deles”. Esse juízo não é atestado directamente pelos sentidos; mas, se não for admitido como verdadeiro, também não seria verdade que “a água destila através das rochas", ou que “o calor e o frio passam através das paredes”.
A conjugação do conhecimento sensível e do conhecimento racional permite a Epicuro justificar sua adesão ao atomismo criado por Leucipo (meados do século V a.C.) e Demócrito (c. 470 - c. 370 a.C.). Com efeito, se os sentidos atestam o movimento como uma evidência, seria verdadeira, graças ao critério da não-infirmação, a teoria atomista, que apresenta uma explicação racional para o movimento, afirmando que tudo é constituído de átomos (invisíveis) que se movem no vazio.
Como os anteriores atomistas, Epicuro considera os átomos como infinitos em número, indivisíveis fisicamente (insecáveis) e imensamente pequenos (sua variação de tamanho estaria situada aquém do limiar de percepção); além disso, seriam móveis por si mesmos, pois o vazio não ofereceria qualquer resistência à locomoção. Leucipo e Demócrito haviam afirmado que os átomos, materialmente idênticos, diferiam uns dos outros apenas pela forma, pelo tamanho, pela posição ou, quando constituíam conjuntos, pelo arranjo. Epicuro, porém, introduz uma nova distinção: os átomos seriam diferentes também quanto ao peso. Os primeiros atomistas consideravam o peso uma resultante do tamanho dos átomos: os maiores, mais sujeitos aos impactos dos outros, locomovem-se com mais dificuldade e tendem a ocupar o centro dos agrupamentos de átomos, comportando-se como mais pesados. Ao contrário, Epicuro considera o peso um atributo inerente aos átomos, concebendo, portanto, um peso absoluto e não relativo. E devido ao peso é que os átomos, num momento inicial, são imaginados por Epicuro como “caindo”; mas, situados dentro do vazio, teriam que desenvolver, nessa “queda”, trajectórias necessariamente paralelas. Isso significa que os átomos jamais se chocariam - dando origem aos engates e aos torvelinhos indispensáveis à constituição das coisas e dos mundos - se algum factor não viesse interferir naquele paralelismo das trajectórias. Afastando-se do rígido mecanicismo da física dos primeiros atomistas, Epicuro introduz então a noção de desvio (clinamen): sem nenhuma razão mecânica, os átomos, em qualquer momento de suas trajectórias verticais, podem se desviar e se chocar. O clinamen aparece, assim, como a introdução do arbítrio e do imponderável num jogo de forças estritamente mecânico: é a ruptura da necessidade, do plano da física, para acolher a contingência.
A justificativa do clinamen está garantida pela canónica de Epicuro: a evidência imediata revela que existe um ser - o homem - que, embora constituído de átomos (como todos os seres do universo), manifesta a possibilidade de arbítrio, pelo qual altera os rumos de sua vida ou, pelo menos, pode modificar sua atitude interior diante dos acontecimentos. A existência da vontade livre seria, portanto, o fato experimentado que, através do critério da não-infirmação, encontraria explicação no desvio que deve também ocorrer nas trajectórias atómicas. Inconcebível seria admitir que um composto (o homem) apresentasse atributos inexistentes em seus componentes (os átomos). A doutrina do clinamen serve, assim, para fundamentar, dentro de um universo de coisas regido pelo fatalismo e pela necessidade mecânica, a espontaneidade da alma, a autonomia da vontade, a liberdade humana. Na física Epicuro situa as premissas de sua ética.

A verdadeira sabedoria

Com sua concepção materialista da realidade, Epicuro pretende libertar o homem dos dois temores que o impediriam de encontrar a felicidade: o medo dos deuses e o temor da morte. Os deuses existem, afirma Epicuro, mas seriam seres perfeitos que não se misturam às imperfeições e às vicissitudes da vida humana. Os deuses viveriam em perfeita serenidade rios es aços que separam os mundos. Sua perfeição suprema constitui o ideal a que aspiram os sábios e deve ser objecto de culto desinteressado; não teria sentido adorá-los de maneira servil, temerosa e interesseira, pois eles desconhecem o mundo imperfeito dos homens e de modo algum actuam sobre ele. Quanto à morte, não há também por que temê-la. Ela não seria mais que a dissolução do aglomerado de átomos que constitui o corpo e a alma. A morte, portanto, não existe enquanto o homem vive e este não existe mais quando ela sobrevém.
A libertação do temor dos deuses e da morte não basta para conduzir o homem à verdadeira felicidade. É necessário ainda que ele se liberte da ânsia incontrolada de prazeres e do incontido pesar pelas dores.
A luminosidade racional da doutrina atomista permitiria ao homem afastar os sombrios temores que lhe intranquilizavam a alma, bem como reconhecer-se como um ser perfeitamente integrado na natureza universal. Enquanto ser natural, o homem - como os animais - pauta sua vida, espontaneamente, pela procura do prazer e pela fuga da dor. Mas a verdadeira sabedoria está além desse comportamento natural e espontâneo: sábio é reconhecer que há diferentes tipos de prazer, para saber seleccioná-los e, dosá-los. O hedonismo epicurista reconhece que o ponto de partida para a felicidade está ria satisfação dos desejos físicos, naturais. Mas essa satisfação, para não acarretar sofrimentos, deve ser contida, reduzindo-se ao estritamente necessário: sábio é aquele que “com um pouco de pão e de água rivaliza com Júpiter em felicidade”.
Epicuro considera que todo prazer é basicamente um prazer corpóreo. Mas, ao contrário dos cirenaicos - corrente hedonista que se pretendia herdeira de Sócrates -, Epicuro afirma que o prazer que o homem deve buscar não é o da pura satisfação física imediata e mutável, o “prazer do movimento”. Para Epicuro, o prazer que deve nortear a conduta humana - o prazer com dimensão ética e não apenas natural - é o "prazer do repouso", constituído pela ataraxia (ausência de perturbação) e pela aponia (ausência de dor). Ambas podem ser alcançadas na medida em que o homem, através do autodomínio, busque a auto-suficiência que o torne um ser que tem em si mesmo sua própria lei, um ser autárquico, capaz de ser feliz e sereno independentemente das circunstâncias. Para tanto, deve renunciar aos prazeres que possam ser fontes de aflição e aceitar a dor quando ela é portadora de um bem futuro (que nunca deve ser confundido com a suposta vida depois da morte). É necessário, portanto, fazer um cálculo utilitário dos prazeres e das dores possíveis, como primeiro passo para a conquista da felicidade. Epicuro, porém, reconhece que as circunstâncias podem impor a dor como um fato inelutável. Sabedoria será então utilizar a liberdade interior e, através do artifício que essa liberdade permite, permanecer sereno e feliz. À dor presente, ensina Epicuro, pode-se escapar por meio da lembrança dos prazeres passados ou pela expectativa de prazeres futuros. Interiormente, o homem é livre para jogar, à vontade, com as imagens (eidola) que seriam resquícios corpóreos (formados de átomos mais ténues) de suas sensações. Epicuro - ele próprio um homem doente e vítima de terríveis sofrimentos físicos, ele próprio um grego sem liberdade política - teria dado a demonstração dessa técnica interior de evasão, capaz de permitir ao homem enfrentar serenamente as mais adversas circunstâncias. Seu hedonismo altamente espiritualizado, que fazia da contemplação intelectual e das delícias da amizade os mais elevados prazeres, legou às éticas posteriores uma lição que nunca mais será esquecida: a de que o homem também pode se sustentar de recordações e de esperanças.
A poesia do materialismo

Na própria Antiguidade o epicurismo não sofreu reformulações. Os seguidores imediatos de Epicuro limitaram-se a cultuar a memória do mestre e a preservar e propagar suas ideias.
Segundo Diógenes Laércio, a obra de Epicuro compreendia cerca de trezentos títulos, dentre os quais só Sobre a Natureza compreenderia 37 livros. Dessa grande quantidade de escritos, todavia, restou muito pouco: o próprio Diógenes Laércio conservou uma Carta a Heródoto (que trata da física), uma Carta a Pítocles (de autenticidade contestada e tratando dos meteoros) e uma Carta a Meneceu (sobre moral); Diógenes Laércio faz seguir essas cartas de quarenta sentenças atribuídas a Epicuro e conhecidas sob a denominação de Máximas Principais. Em 1888, K. Wotke descobriu, num manuscrito da biblioteca do Vaticano, 81 máximas de Epicuro, algumas já inseridas nas Máximas Principais. Por outro lado, as escavações realizadas em Ilerculanum trouxeram à luz uma biblioteca epicurista, contendo inclusive o Sobre a Natureza de Epicuro.
Mas, se os escritos de Epicuro só são conhecidos de forma fragmentária, existe uma outra fonte para o conhecimento de sua doutrina: o poema Da Natureza das Coisas, de seu seguidor Lucrécio, que viveu em Roma entre os anos 99 e 55 a.C.
Pouco se sabe da vida de Tito Caio Lucrécio. Nasceu provavelmente em Roma, onde foi educado. Quando conheceu a doutrina de Epicuro - "honra da raça grega" -, Lucrécio deslumbrou-se com seus ensinamentos, que lhe pareceram a chave para desvendar os segredos do universo e para abrir as portas da felicidade humana. Seguindo as pegadas do mestre, Lucrécio propõe-se a tarefa de libertar os romanos da religião que os oprimia e que sobre eles pesava com mais força do que outrora pesara sobre os gregos.
Além de servir de fonte para conhecimento da doutrina epicurista, o poema de Lucrécio tem imensa importância literária: através dele Lucrécio se revela um dos maiores poetas da língua latina.
Lucrécio matou-se em 55 a.C. Seu poema, escrito em intervalos de ataques de loucura, ficou inacabado e foi completamente revisado, para publicação, segundo algumas fontes, por um irmão de Cícero chamado Quinto. Segundo outras fontes, aquele trabalho foi feito pelo próprio Cícero, que tinha pelo poeta do materialismo profunda admiração.
A Consciência Infeliz

“Estoicismo” tornou-se expressão consagrada no vocabulário actual, com o sentido de “firmeza e serenidade diante das adversidades”. Esta doutrina filosófica é a expressão (tanto como do epicurismo, do qual é contemporânea) de um tipo normativo de vida ecuménica conforme à razão e de aceitação espontânea da fatalidade de leis universais. A escola representa um retrocesso em relação às conquistas anteriores de reflexão filosófica sobre o mundo, compreendendo o período pré-socrático e a teoria atomística de Leucipo e Demócrito de Abdera. A divisa latina nihil mirari (não se admirar) cunhada mais tarde pelos estóicos latinos, em contrapartida ao assombro, de que falava Platão, demarca negativamente esse aspecto de acolhida resignada dos acontecimentos universais.
O “não assombrar-se”do estóico, atitude vizinha à da incompreensão, projecta no espaço e no tempo histórico esse sentimento trágico da vida que Pascal traduz como oposição entre a ideia de verdade e sua impotência para prová-la, revivendo o drama da condição humana que os existencialistas modernos exploram até o desespero. O drama da consciência infeliz, característica do modelo estóico, tanto quanto do epicurista e mesmo do existencialismo do século XX reflecte uma época histórica perpassada por grave crise, com falta de liberdade política, grande fatalidade e, não raro, tragédia física pessoal como uma severa enfermidade (caso de Demócrito). No existencialismo, por exemplo, o drama subjectivo moral reside em ser-se “fiel a si mesmo”, centra-se numa exaltação da individualidade – retrato de uma capitulação em actuar na prática política em busca de transformação –, cuja existência é essencial e constitutiva.
A consciência estóica só se afirma pela cisão do eu em relação ao mundo: busca a certeza e a segurança fora de toda a ligação com outros seres humanos, separando-se das coisas e do conhecimento das coisas, puramente negativas, sobretudo fixada na negatividade, a consciência de si do estóico se transforma em cepticismo e a liberdade do estóico não é senão um estado de consciência infeliz.
A crise existencial dos estóicos oscila entre situações excludentes, limitativas, de um estado a outro no círculo mágico, repetitivo, de todas as coisas e de todo os seres encontra ainda um parentesco curioso nas exortações de Zaratustra, de Nietzsche: a palingenesia, o eterno retorno, do mundo e dos seres na fatal trajectória de nascimento, morte e ressurreição, sem termo nem descanso. “A vida que vives agora, haverás de vivê-la inúmeras vezes; cada dor, cada alegria, cada pensamento e cada suspiro...tudo voltará de novo e tudo na mesma ordem”.
Nunca, ao certo, se precisaram os motivos que tão rapidamente fizeram retroagir os ideais humanísticos aos níveis desse estado de consciência dilacerada de que são exemplo as tendências éticas que se manifestaram, concomitantemente, à crise do mundo helenístico – a sociedade escravista em dissolução – dentre elas o estoicismo e o epicurismo.
Em suma, a decadência das instituições gregas, a perda dos valores éticos e dos deuses tutelares, como reflexo da tragédia económica e política de lutas externas e intestinas entre as facções constituem o quadro real dessa fase helenística da história que reserva ao estóico desamparado a única saída de salvação: uma fuga da realidade do mundo na forma de uma cisão esquizofrénica do eu com o mundo... As tragédias são enormes, a Grécia perdeu sua autonomia, dominada pelos macedónios e, a seguir pelos romanos, a tirania impera e o espaço político está ocupado por estrangeiros ou por uma classe social que não me escuta. Que fazer? Buscar a felicidade ou a ataraxia, a imperturbabilidade, em isolamento da realidade.
No século XIX alguns arqueólogos descobriram em Enoanda, actual Turquia, os restos de uma muralha, com uma inscrição. Dela constavam trechos de ensinamento que Diógenes de Enoanda, discípulo de Epicuro, gravou para disponibilizar a todos quantos passassem por ali, fosse homem, mulher ou criança, de qualquer nacionalidade, o que seria um resumo da sabedoria humana em quatro frases, uma prescrição médica para a alma, um TETRAPHARMAKON que dizia:
1) Não há nada a temer quanto aos deuses;
2) Não há necessidade de temer a morte;
3) A Felicidade é possível;
4) Podemos escapar à dor.

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