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quinta-feira, 10 de abril de 2008

Estoicismo

Marco Túlio Cícero

Em Janeiro de 49 a.C., Júlio César decidiu-se por atravessar o Rubicão (alea jacta est), gesto que foi a gota d’água no desencadeamento da guerra civil que o levaria a dominar todo o império. Venceu Pompeu em Farsala, instalou Cleópatra no trono do Egipto, reorganizou o Oriente e derrotou os últimos adeptos do segundo triúnviro na África, em 46 a.C., e na Espanha, um ano depois. De volta a Roma em 45 a.C., começou a governar como déspota absoluto e tratou de eliminar os últimos adversários. Não suspeitava que isso teria importantes consequências para a história da filosofia.
Entre os adversários perseguidos estava Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.), senador e figura proeminente da política romana nos anos anteriores. Obrigado a deixar os negócios públicos, Cícero recolheu-se à vida privada e retomou a meditação filosófica, de que já se ocupara num primeiro exílio, por volta de 51 a.C. O resultado foi um conjunto de obras, escritas em aproximadamente dois anos e que versavam sobre os mais variados assuntos: Sobre os Fins, Controvérsias Tusculanas e Sobre os Deveres tratam de problemas éticos; Os Tópicos e Os Académicos abordam questões lógicas; A Natureza dos Deuses, Sobre a Arte Adivinhatória e Sobre o Destino são dedicados a temas da física.
Do ponto de vista da filosofia, essas são as principais obras escritas por Cícero no retiro forçado por César e vinham juntar-se a Sobre o Orador, escrito em 55 a.C., A República, redigida em 51 a.C., e Sobre as Leis, provavelmente da mesma época.
Esse conjunto de obras desempenharia papel de primeiro plano na história do pensamento porque fazia do latim um idioma filosófico. Pouco antes, Lucrécio tinha escrito o poema Sobre a Natureza, mas a obra não foi publicada senão após a morte do poeta e, ao que tudo indica, sob os cuidados de Cícero.
Apesar desse valor histórico, as obras de Cícero não contêm um pensamento original, limitando-se a amalgamar diferentes teorias filosóficas gregas. Cícero foi um típico eclético, discutindo os argumentos das diferentes doutrinas gregas correntes na época, sem vincular-se inteiramente a nenhuma.
Essas correntes ele tinha conhecido quando, na juventude, estudou em Atenas, antes de tornar-se conhecido advogado e homem público. Foi discípulo e amigo de epicuristas, estóicos, peripatéticos e académicos. De todos eles Cícero retirou algumas ideias e compôs uma síntese que, além da importância pela criação de um vocabulário filosófico latino, constitui fonte de estudo de boa parte do pensamento clássico.
No que diz respeito às suas próprias posições doutrinárias, Cícero, em teoria do conhecimento, opôs-se tanto ao cepticismo radical de Pirro de Elis (360 - 270 a.C.) quanto ao dogmatismo extremado. Defendeu como critério de verdade o probabilismo do consenso universal, isto é, aquela posição que acha possível ao homem chegar a algum conhecimento das coisas, sem, no entanto atingir a verdade absoluta. A verdade estaria naquilo que pode ser aceito por todos. As razões dessa posição são colocadas menos num plano puramente lógico do que no terreno das necessidades práticas do homem. Para Cícero, o problema do conhecimento não pode ser solucionado exclusivamente em sua estrutura interna. O homem necessita, todavia, admitir como verdadeiras algumas noções sem as quais não é possível manter a coesão da sociedade.
Em moral, Cícero adere às doutrinas estóicas sem, entretanto, aceitar todo o rigor da concepção segundo a qual o exercício da virtude basta-se a si mesmo e consiste na conformidade da conduta humana às leis racionais da natureza.
Aceita essas ideias, mas exige que tais normas sejam validadas pelo consenso universal. Esse consenso universal articula-se em torno de algumas ideias que dão fundamento à vida moral e social, principalmente a da existência de Deus e sua providência. Tais noções seriam comprovadas pela consciência natural dos homens e pela constatação de que na natureza os fenómenos organizam-se em torno de fins, os quais supõem a existência de um fim último de todas as coisas. Outra ideia com a mesma função de fundamentar a vida social e moral é a da essência espiritual e divina da alma e sua imortalidade. Essa ideia encontrar-se-ia confirmada na preocupação do homem com sua vida futura.
Os Estóicos
Depois de Cícero ter iniciado a história da filosofia em língua latina, formulando sua síntese eclética, o movimento de ideias mais importante dentro do pensamento romano foi o desenvolvimento das doutrinas estóicas, também originárias da Grécia, como o epicurismo e o ecletismo.
A escola estóica foi fundada por Zenão de Cicio (336 - 264 a.C.) e continuada por Cleanto de Assos (331 - 232 a.C.) e Crisipo de Solis (280 - 210 a.C). Posteriormente, a escola transformou-se, tendendo para uma posição eclética, com Panécio de Rodes (185 - 112 a.C.) e Possidónio de Apaméia (135 - 51 a.C.).
O estoicismo grego propõe uma imagem do universo segundo a qual tudo o que é corpóreo é semelhante a um ser vivo, no qual existiria um sopro vital (pneuma), cuja tensão explicaria a junção e interdependência das partes. No seu conjunto, o universo seria igualmente um corpo vivo provido de um sopro ígneo (sua alma), que reteria as partes e garantiria a coesão do todo. Essa alma é identificada, por Zenão, à razão, e assim o mundo seria inteiramente racional. A Razão Universal (Logos), que tudo penetra e comanda, tende a eliminar todo tipo de irracionalidade, tanto na natureza, quanto na conduta humana, não havendo lugar no universo para o acaso ou a desordem.
A racionalidade do processo cósmico manifesta-se na ideia de ciclo, que os estóicos adoptam e defendem com rigor. Herdeiros do pensamento de Heráclito de Éfeso (séc. VI a.C.), os estóicos concebem a história do mundo como feita por sucessão periódica de fases, culminando na absorção de todas as coisas pelo Logos, que é Fogo e Zeus. Completado um ciclo, começa tudo de novo: após a conflagração universal, o eterno retorno.
Tudo o que existe é corpóreo e a própria razão identifica-se com algo material, o fogo. O incorpóreo reduz-se a meios inactivos e impassíveis, como o espaço e o vazio; ou então àquilo que se pode pensar sobre as coisas, mas não às próprias coisas.
Nesse universo corpóreo e dirigido pelo fatalismo dos ciclos sempre idênticos, tudo existe e acontece segundo predeterminação rigorosa porque racional. Governada pelo Logos, a natureza é por isso justa e divina e os estóicos identificam a virtude moral com o acordo profundo do homem consigo mesmo e, através disso, com a própria natureza, que é intrinsecamente razão. Esse acordo consigo mesmo é o que Zenão chama "prudência" e dela decorrem todas as demais virtudes, como simples aspectos ou modalidades.
As paixões são consideradas pelos estóicos como desobediências à razão e podem ser explicadas como resultantes de causas externas às raízes do próprio indivíduo; seriam, como já haviam mostrado os cínicos, devidas a hábitos de pensar adquiridos pela influência do meio e da educação. É necessário ao homem desfazer-se de tudo isso e seguir a natureza, ou seja, seguir a Deus e à Razão Universal, aceitando o destino e conservando a serenidade em qualquer circunstância, mesmo na dor e na adversidade.
Uma nova lógica
Os estóicos gregos não se limitaram a formular uma física e uma ética. Elaboraram também uma teoria do conhecimento de acentuada originalidade. As três formariam um conjunto sistemático que expressaria, no plano do conhecimento, a mesma racionalidade encontrada na natureza.
A teoria do conhecimento consiste, para os estóicos, em vincular estreitamente a certeza e a ciência ao plano do conhecimento sensível. A base de qualquer conhecimento seria as impressões recebidas pelos sentidos; mas já o nível do sensível estaria penetrado pela razão, sendo portanto predisposto à sistematização pela inteligência.
Ao lado das coisas sensíveis, os estóicos distinguem os "exprimíveis", isto é, aquilo que se pode pensar e dizer sobre as coisas. Os "exprimíveis" seriam objecto da dialéctica, disciplina que se ocuparia dos enunciados verdadeiros ou falsos a respeito das coisas, e não sobre as próprias coisas.
Os mais simples enunciados, segundo os estóicos, são compostos por um sujeito (expresso por um substantivo ou um pronome) e um atributo (expresso por um verbo). Esses enunciados distinguem-se, assim, das proposições da lógica aristotélica, que estabelecem relações entre conceitos (por exemplo: "o homem é um animal racional"). Na lógica estóica, o sujeito é sempre singular (alguém, Pedro, etc.) e o atributo indica sempre algo que ocorre com o sujeito. As ligações entre os enunciados, portanto, nunca assumem o carácter de juízo categórico, permanecendo como relacionamento entre eventos, cada qual expresso por uma proposição simples (por exemplo: "Está claro, é dia").
Os estóicos distinguem cinco tipos de juízos compostos que reúnem os enunciados simples. O juízo hipotético exprime relação entre antecedente e consequente ("Se há fumaça, há fogo"). O juízo conjuntivo simplesmente justapõe fatos ("É dia, está claro"). O juízo disjuntivo separa os enunciados, de modo que só um deles pode ser verdadeiro ("Ou é dia, ou é noite"). O juízo causal exprime relação de causa e efeito ("Está claro porque é dia"). Finalmente, o quinto tipo de juízo expressa a ideia de mais e menos ("Fica menos claro quando é mais noite").
Séneca – A Medicina da Alma
Não foi a lógica dos estóicos gregos, nem mesmo sua teoria do mundo físico, que sobretudo atraiu o interesse dos estóicos romanos. Foi antes sua moral da resignação, sobretudo nos aspectos religiosos que ela permitia desenvolver.
O primeiro representante do estoicismo romano, sem contar as ideias estóicas que se encontram no ecletismo de Cícero, foi Lucius Annaeus Séneca, nascido em Córdoba (Espanha), aproximadamente quatro anos antes da era cristã. Era filho de Annaeus Séneca (55 a.C.-39 a.D.) - conhecido como Séneca, o Velho -, que teve renome como retórico e do qual restou uma obra escrita (Declamações). O futuro filósofo Séneca foi educado em Roma, onde estudou a retórica ligada à filosofia. Em pouco tempo tornou-se famoso como advogado e ascendeu politicamente, passando a ser membro do senado romano e depois nomeado questor.
O triunfo político, no entanto, não se fazia sem conflitos e o renome de Séneca suscitou a inveja do imperador Calígula, que pretendeu desfazer-se dele pelo assassinato. Séneca, contudo, foi salvo por sua saúde frágil; julgava-se que ele morreria muito cedo, de morte natural. O próprio Calígula é que faleceria logo depois e Séneca pôde continuar vivendo em relativa tranquilidade. Não duraria esse período muito tempo. Em 41 d.C: foi desterrado para a Córsega, sob acusação de adultério, supostamente praticado com Júlia Livila, sobrinha do novo imperador Cláudio César Germânico. Na Córsega, Séneca passaria quase dez anos em grande privação material.
Em 49 d.C., Messalina, primeira esposa do imperador Cláudio e responsável pelo exílio de Séneca, caiu em desgraça e foi condenada à morte. O imperador Cláudio casou-se com Agripina e esta mandou chamar Séneca para educar seu filho Nero. Em 54 d.C., quando Nero se torna imperador, Séneca passa a ser seu principal conselheiro. Esse período estende-se até 62 d.C., ano em que sua estrela começa a perder o brilho junto ao despótico soberano. Séneca deixa a vida pública e sofre a perseguição de Nero, que acaba por condená-lo ao suicídio, em 65 d.C.
As Cartas Morais de Séneca, escritas entre os anos 63 e 65 e dirigidas a Lucílio, misturam elementos epicuristas com ideias estóicas e contêm observações pessoais, reflexões sobre a literatura e crítica satírica dos vícios comuns na época. Entre os seus doze Ensaios Morais, destacam-se Sobre a Clemência, cautelosa advertência a Nero sobre os perigos da tirania, Da Brevidade da Vida, análise das frivolidades nas sociedades corruptas, e Sobre a Tranquilidade da Alma, que tem como assunto o problema da participação na vida pública. As Questões Naturais expõem a Física estóica enquanto vinculada aos problemas éticos.
Além dessas obras propriamente filosóficas, Séneca escreveu ainda nove tragédias e uma obra-prima da sátira latiria, Apolokocintosis, que ridiculariza Nero e suas pretensões à divindade.
Todas essas obras revelam que Séneca foi, sobretudo, um moralista. A filosofia é para ele uma arte da acção humana, uma medicina dos males da alma e uma pedagogia que forma os homens para o exercício da virtude. O centro da reflexão filosófica deve ser, portanto, a ética; e a física e a lógica devem ser consideradas como seus prelúdios.
Sua concepção do mundo repete as ideias dos estóicos gregos sobre a estrutura puramente material da natureza. Contudo, a razão universal dos gregos Cleanto e Zenão transforma-se em Séneca num deus pessoal, que é sabedoria, previsão e vigilância, sempre em acção para governar o mundo e realizar uma ordem maravilhosa.
Marco Aurélio – O Imperador Filósofo
Cronologicamente, o segundo grande representante do estoicismo romano foi Epicteto (c. 50 – 130 ), escravo durante muitos anos e, posteriormente, professor de filosofia. Seu ensino foi recolhido pelo discípulo Ariano de Nicomédia, em oito livros. Chegaram até a actualidade quatro livros inteiros e apenas alguns fragmentos dos restantes.
Grande admirador de Epicteto foi o imperador Marco Aurélio Antonino, que, nas pausas tranquilas de seu conturbado governo, se dedicou à reflexão filosófica e com isso tornou-se o terceiro e último grande expoente do estoicismo romano.
Marco Aurélio nasceu em 121, no seio de uma família aristocrática, e muito cedo perdeu os pais. Foi então adoptado pelo tio, Aurélio Antonino. O tio tornar-se-ia imperador e nomearia Marco Aurélio seu sucessor, em 161.
Aos onze anos de idade, Marco Aurélio conheceu o estoicismo e adoptou hábitos de vida austera, recomendados por aquela escola filosófica. Depois dos anos de formação passou a colaborar intimamente com o imperador, seu pai adoptivo, ocupando o cargo de cônsul por três vezes. Em 161, Aurélio Antonino faleceu e Marco Aurélio tornou-se imperador.
O governo de Marco Aurélio - que se estendeu por quase vinte anos, até sua morte em 180 - foi perturbado por guerras sangrentas e prolongadas, com as consequentes dificuldades internas. Além disso, Roma foi vítima de inundações, tremores de terra e incêndios. Marco Aurélio conseguiu enfrentar todas as dificuldades, tendo sido excelente guerreiro e administrador e, ao mesmo tempo, humanizando profundamente o exercício do poder. Nos poucos momentos que os encargos de governo permitiam, recolhia-se à meditação filosófica e escrevia seus pensamentos em língua grega, que lhe parecia a mais apta a exprimir inquietações intelectuais e morais profundas. As Meditações (como posteriormente ficaram conhecidos aqueles pensamentos) são simples notas, apenas esboçadas.
O conteúdo das Meditações é a filosofia estóica, mas de um estoicismo bastante distante das doutrinas de Zenão, Cleanto e Crisipo. As especulações físicas e lógicas cedem lugar ao carácter prático dos romanos e ao aconselhamento moral. Em Marco Aurélio - como também nas Máximas de Epicteto - a questão central da filosofia é o problema de como se deve encarar a vida para que se possa viver bem. Esse problema assume a forma de intensa preocupação com o estado de sua própria alma, em virtude da natureza delicada e sensível do autor das Meditações, homem sobretudo religioso e pouco interessado na investigação científica. Por essa razão o estoicismo de Marco Aurélio frequentemente apresenta discrepâncias em relação às suas origens gregas. Marco Aurélio não chegou a ser um pensador original e não procurou resolver as inconsistências de sua própria posição. Enquanto a ortodoxia estóica levava-o na direcção de um credo materialista, seu sentimento religioso impelia-o no sentido da força moral e da benevolência. Por isso, as Meditações de Marco Aurélio expressam-se através de uma linguagem que, por um lado, parece pressupor a aceitação de um panteísmo puramente físico; por outro, abandona os dogmas da escola estóica para seguir os ditames do coração.
Por certo a verdadeira chave para compreensão das oscilações de Marco Aurélio deve ser procurada menos em suas características psicológicas do que nas circunstâncias históricas em que viveu. O império romano estava perdendo o antigo esplendor e a cultura clássica greco-latina mostrava os últimos sinais de vitalidade. Cada vez mais ganhava corpo uma nova concepção do mundo: o cristianismo.
Marco Aurélio expressa claramente essa etapa de transição. Nele a auto-suficiência do antigo estoicismo grego cede lugar à falta de confiança em si mesmo e à consciência das próprias imperfeições. Com isso antecipa a virtude cristã da humildade e pouco se distanciava da concepção de um Deus único, antropomórfico e pessoal.
Lázaro Curvêlo Chaves - 28 de Setembro de 2004

Via: http://www.culturabrasil.org/seattle1.htm

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